domingo, 20 de dezembro de 2009

Necrofilia e Narcisismo



(ISSO SIM É UM VAMPIRO... Imagem de um vampiro do clan Tzimisce, criação da White Wolf. A imagem não me pertence, muito menos a marca. Quem dera... Estaria rica...)

Venho pensando muito em vampiros. E no sucesso atual destas alegorias de eternidade. Tenho familiaridade com a mitologia da coisa como ex-jogadora de rpg. E fui apresentada a um tipo de visão, a do jogo, muito diferente do mais novo pasteurizado litarário e cinematográfico (não era uma consequência óbvia?) sobre o tema. Claro, que nada é mais divertido que a variedade. Mas eu gostaria TANTO que a variedade fosse AO MENOS inteligente... A visão que conheço do tema foi criada levando em conta a mitologia européia medieval sobre mortos que vagam em busca de sangue alheio. São criaturas corruptas, que deviam estar enterradas. São representações retóricas de vícios e do inferno, criadas para provocar temor e ilustrar um meio de vida que deveria ser evitado. Devia-se temer virar um vampiro. Estar morto em vida devido à sedução de um servo do inimigo público número um da época, ou seja, nosso querido e muito conhecido, Lú. Eu não creio nem em Deus, nem no Diabo, vale adiantar. Mas tenho um profundo respeito pelo poder de criação da mente humana. E o que a mente humana criou foi uma representação pavorosa do que é estar morto e vivo ao mesmo tempo. Conseguem imaginar o coração não bater? O pulmão não mexer? As sensações experimentadas por quem perdeu seus membros, quando, de fato, eles estão alí? A excitação sexual não existir a não ser através do cheiro do sangue de outra pessoa? Esse é um vampiro.
Agora, passemos ao vampiro por dentro. Para entrar para o time dessas fabulossas alegorias pestilentas deve-se errar, pecar, na definição medieval. Um vampiro não força; ele seduz. Se você foi seduzido, é porque seu caráter não resistiu. Logo, ser um vampiro é um certificado de poço de vícios ambulantes. Aqui vai a primeira batida do meu aríete: Ser um vampiro e ser uma boa pessoa são grandezas inversamente proporcionais.
Sigamos, pois esse texto é um exercício de impaciência e eu creio estar sendo clara o suficiente.
No século XIX, muitas dessas alegorias de pavor sofreram mudanças. Isso se deve a uma espécie de fascínio pela morte que as novas concepções de amor usaram de veículo para fascinar jovenzinhas de corpo mole e inclinações ainda mais indolentes. A atração por cemitérios, venenos e figuras obscuras de preto que traziam Síndrome de Estocolmo escrito na testa levou milhares delas ao único lugar onde poderiam chegar: ao túmulo. Bem cedo. As taxas de mortalidade de mulheres jovens na Inglaterra vitoriana fala por si. Não estou contando as mortes por parto. Se chegaram à tanto, já não eram jovenzinhas moles e suas inclinações, quaisquer que fossem, já passavam mais perto de ter a casa abastecida do que da indolência de um romance recheado de tolices. Tolice, aliás, é o sinônimo perfeito para essa concepção folhetinesca de amor que se vulgarizou e se mantém viva até hoje.
O marco que quero estabelecer para o século XIX é o livro de Bram Stoker. Seu Drácula passa longe de ser humano, em qualquer sentido da palavra. Não era humano nem quando era vivo. Tinha por hobby o empalamento. Usa a todos os personagens para seus próprios propósitos e quer tomar a mulher de Harker por ela se parecer com uma antiga companheira. E Mina Harker, é importante dizer, nutre uma repulsa violenta por ele. Ela não é capaz de amar um morto-vivo que ainda por cima, tentou matar o marido dela. Logo, mesmo em meio ao teatro de amor e morte vitoriano, vampiros não circulavam nas rodas provocando os suspiros de jovenzinhas moles. Elas costumavam preferir protagonistas VIVOS. Indolência, sim. Mas a necrofilia ainda não estava no cardápio das mocinhas de rosto corado e vestidos de cintura alta.
Vamos ao ponto central da análise. Essa súbita paixão por mortos que se dissemina entre garotinhas de corpo mole dos 12 aos 70 anos. Os vampiros voltaram a fazer parte do meu cotidiano por menções constantes ao hit do momento. Desde o início, já não sentia vontade de ler os romances. Não sinto vontade de perder tempo com histórias que subestimam a inteligência dos adolescentes. E já não sou adolescente há muito tempo. Nos moldes do que se entende por adolescência, eu nunca fui. Sempre dei muito valor ao meu cérebro. E acho uma pena que a juventude de agora não se dê o mesmo valor. Mas, como tento manter minha cabeça aberta, e uma pessoa próxima se afeiçoou ao vampiro protagonista, fui me inteirar do assunto. E estou aqui para ser linchada em praça pública pelas garotinhas enlouquecidas porque não vejo na saga motivo algum para esse desespero de marketing. Na verdade, minha opinião à respeito é até um pouco pior. A proposta do livro é nauseante para mim, que sou entusiasta da vida. Não gosto de necrofilia. E o vampiro adolescente de 200 anos em questão está, antes de mais nada, morto. Algum homem morto é capaz de satisfazer uma mulher, ou outro homem? Hmmm...
Mas antes que me digam que eu não sei apreciar a fantasia da coisa (e fantasia tem mesmo muitos sentidos, não é?), tenho algo mais a salientar. A autora, quer ela admita, quer não, foi apresentada a esse universo da mesma forma que eu. Logo, ela está tangenciando perigosamente a criação de uma corporação de entretenimento e usando coisas que outros criaram para lucrar. E isso no mundo do "gênio" como contraponto do "engenho", é antiético. Não aprecio posições antiéticas. E não aprecio trabalhos tecnicamente mal-feitos. E uma emulação mal-feita de um jogo de rpg misturado a uma soap-opera adolescente é, por definição, um trabalho mal-feito.
Não quero mais me deter na técnica. Prefiro voltar à necrofilia. Desenvolvi uma certa predileção pelo tema observando o comportamento do público do livro, em especial, o estranho desejo de amar um morto. E não é qualquer morto... Trata-se de um menino morto há 200 anos, mais do que decomposto por dentro, por assim dizer. "Ele é um cara legal, só se alimenta de sangue humano, nada demais...". Já apresentei na introdução os motivos pelos quais "vampiro" e "cara legal" não deviam se referir a uma mesma pessoa. Logo, o senhor adolescente de 200 anos (isso é mesmo possível? Que um personagem viva 200 anos e continue com a falta de maturidade de um adolescente?) não é um "cara legal". Ele é algo morto e não morto que se alimenta de sangue de gente e não tolera o sol. E, alegoricamente, basta dizer que até Dorian Gray desfilava seu rosto perfeito à luz do dia. E, inevitávelmente, vêm as advogadas de defesa. As Darwinistas, que defendem a causa da cadeia alimentar: "Mas ele não bebe sangue de gente... Só de animais!". E as vegetarianas: "Nem isso! Eles bebem de bancos de sangue! Não maltratam animaizinhos!"... E de onde será que vem o sangue dos bancos de sangue? Hmmm... Valendo uma bala Juquinha, meninas!
Chega de brincar. Quais serão as raízes dessa necrofilia em massa? Vamos tentar Freud. Seria esse vampiro um líder carismático? Que tipo de fascínio um personagem ficcional pode exercer para se tornar objeto de libido apesar de estar morto há dois séculos? E que tipo de fascínio as questões de morte exercem na autora, que fez um exercício de libido adolescente escapar na forma de um morto para as prateleiras de livrarias do mundo inteiro?
Vamos às características do personagem. A definição mais interessante que ouvi a respeito dele ser o "homem perfeito" foi sobre ele supostamente se sacrificar e abandonar a tudo e a todos por sua amada mortal. Hmm... Merece ponderação. Ele age como se tivesse dezenove anos, quando tem duzentos e dezenove. Logo, a vida longa não ensinou nada a ele. Ele supostamente é um personagem marcado pela dor. Mas que dor é essa? A dor de ter uma família de iguais, que ele nunca perderá, já que já estão todos mortos, e de viver com MUITO conforto? A dor de frequentar o sistema educacional americano quando ele já tem idade para ter feito o segundo grau umas cento e oitenta vezes? (Isso sim, deve incomodar...). Fica melhor... É por causa dessa suposta "dor" que ele adia o inevitável clichê de transformá-la em algo morto como ele. Deve ser porque ele leu no gibi do Homem-Aranha que "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". Mas adiar a morte pela qual ela tanto anseia, e pela qual ele também anseia não é exatamente sacrificar algo por amor... É impedir a consumação do amor, e o que é pior: isso tem o único propósito de compensar a falta de um enredo decente. Ele sacrifica O AMOR para não ser o "monstro" que a matou, sendo que a morte é algo normal para ele. ELE impede o amor para manter as mãos limpas. Isso é o máximo de egoísmo ao qual se pode chegar. Negar ao objeto de seu desejo a felicidade por razões de consciência que, no fim das contas, não existem. Porque, se realmente houvesse um dilema de consciência, o desfecho da saga seria outro. Mas, desfechos melosos vendem mais. Ainda sobre o tema do egoísmo dele. Depois de decidir não permitir que o amor dos dois se realize para não ter que pensar mal de si mesmo, ele resolve ir para o outro lado do mundo se matar para salvar os irmãos.NÃO ELA, que quase morre de várias maneiras por causa da loucura necrófila não realizada. Ele se mantém indiferente às tentativas de suicídio e aos perigos dela. Ela já não é mais seu encargo. Ao invés de cuidar dela, a quem ele tanto ama, ele se desliga em busca do próprio suicídio, num lampejo melodramático que em nada combina com alguém que supostamente tem uma vastíssima experiência de "vida".Que amor é esse? E é ela quem tem que salvar a vida doaquele que a abandonou, como se ele fosse a vítma das circunstâncias.Coloca-se a pergunta: É esse o personagem que "abandona tudo por sua amada"? Que a coloca "em primeiro lugar"? Aonde está essa dedicação incondicional? Eu só vejo o mais puro egoismo. Mas eles ficam juntos no final, é claro. O clichê tem que estar lá para garantir as vendas e a consumação da libido necrófila em massa. Logo, que venha a prole nascida do ventre de uma morta que foi, por sua vez, fecundada por um morto. Reina a felicidade mais bizarra da literatura norte-americana. Isso podia ser o mote de um livro de Stephen King. Do que será que a criança se alimenta? Será sangue o suficiente, ou será que ela precisa de carne também? Por sorte, King paira muito acima dos roteiros pobres.
Para concluir, vamos à segunda palavra do título. Porque cobiçar e pintar um personagem sem estofo e anormal e confundí-lo com um tipo de homem ideal é um narcisismo necrófilo e masoquista, que vem de uma necessidade de fugir da realidade, procurando um homem que não existe para justificar a falha em lidar com o próprio egoísmo. Parte-se para a procura de um par desprovido de personalidade, porque é mais fácil para alguém sem personalidade se anular e bajular seu par. Da mesma maneira que ele esqueceu a própria consciência para se render aos desejos de morte dominantes dela, o tipo que se tornou ideal devido ao personagem é egoísta, mas não tem personalidade o suficiente para sustentar seus desejos, sucumbindo à pressão da presença que considera dominante no relacionamento. Cabe a alguém advertir os incautos: ISSO NÃO É AMOR. É o pior tipo de relação de dominação que existe. Não passa de uma união de pessoas desprovidas de personalidade, um duelo de egos disfarçado de amor. E o fenômeno de massa que é agora a procura por esse tipo de "amor", somado à distorção de alegorias de vício e medo em personagens "normais" com quem se pode conviver e em quem se pode espelhar e a quem se pode amar são sintomas do tipo de câncer terminal que estamos nos tornando. É um tipo de transformação. A humanidade vampirizando o que é ser humano. Daí esse sucesso do livro mais monótono e previsível da década. Desculpem, fãs, mas essa saga me enoja. Ela representa algo que eu jamais quero me tornar. Vou voltar para o meu Oscar Wilde. Ele ainda trata loucura como loucura e doença como doença.

Sugestões de leitura: "O Retrato de Dorian Gray" - Oscar Wilde - para noções irônicas de certo e errado
"Voragem" - Jun'Ichiro Tanizaki - Para distinguir doença de amor
"Muito Barulho Por Nada" - Shakespeare - Para entender q amor entre tolos orgulhosos é risível
"Do Amor e Outros Demônios" - Gabriel García Marquez - Para apreciar a dor do amor filial que se perde. Um amor real.
"O Conde de Montecristo" - Alexandre Dumas - Para noções de romance e ética
" Primeiro Amor" - Samuel Beckett - Para entender o que é o amor para um adolescente e o que é a sarjeta do orgulho.
"Uma Estrela Chamada Henry" - Roddy Doyle - Para entender que certo e errado podem variar... Mas nem tanto. E que agir errado traz um preço caro.
"Night Shift" - Dermot Bolger - Para olhar nos olhos tenebrosos, sem fantasias de mortos-vivos, de um amor movido pelo orgulho.

2 comentários:

  1. Apoiado, flor! Em, gênero, número e grau! XD

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  2. Concordo, concordo e não abro mão. Mesmo tendo lido tais livros. Sim, crucifique-me. Mas precisava eu experimentar da boca do demônio o gosto do fel.
    Pelo menos eu gostei dos bizarros lobos.
    Mas enfim...Que Drácula me perdoe.

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