quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Lótus




No espelho de Amaterasu
Abrem-se pétalas brancas
Do sumidouro de mel
Em que te dou de beber.

Graúna.




Minha amiga noite
Sopra estrelas
Nos meus olhos abertos

domingo, 24 de janeiro de 2010

Shiki III



O Outono estala sob a seda dos teus pés
O bordo chia carmesim dos teus lábios
Do kimono caem as folhas que forram o chão.

Marcela Gorga.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Ai Haiti...



Pedra com pedra
Um rasto gemido de chão
escuridão...

Pedra de unhas cravadas na terra
crianças entre as patas
sangue das presas

Torneiras secas...
Sonhos secos...

Um zumbido sem som...
Um suspiro
um Ai...

Marcela Gorga

domingo, 10 de janeiro de 2010

Shiki II



Deixo o rosto invernar lasso na gola do teu kimono,
Enveredando pelos teus verões vagarosos.
A neve é um mobile de tsurus além da shoji.

Marcela Gorga.

Tarde de Junho



Um sorriso. Um simplório mexer de lábios desmoronou meu mundo. À incerteza de mim mesma juntaram-se os escombros da minha razão. Resta apenas o verde-água, a me embalar junto a delírios juvenis em tardes de verão, vividas em pleno inverno chileno. Eu, que sempre achei que a cor do mar era azul, me deixo levar pelas vagas de esmeraldas ensolaradas, sonolenta, entorpecida. Apenas vou.
Agir. Reagir. Ir. Mas não vou. Velhas amarras são difíceis de cortar. Uma criança desacostumada com alegrias vespertinas não se socializa facilmente. “Pode ver, mas não pode mexer”.
Quero e não posso ter, sem ao menos saber das minhas possibilidades de poder. Estar me faria mais feliz. Todavia, antes de qualquer outro verbo a ser expresso nesses encontros pós-almoço, preciso ser. Com ou sem você, eu devo ser. Não sei o quê. Mas serei.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Shiki I (Quatro Estações I)




Enlaçada pelas notas primaveris de um koto
Me emaranho nas sakuras
dos teus cachos outonais.

Marcela Gorga
Rio de Janeiro, 08 de Janeiro de 2010

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Saudades



Cerejeiras em flor
Dos meus olhos sós
Voam sakuras.

Marcela Anders Gorga

Maré





Maré
Amor vermelho na praia
Maria e eu na ciranda
Marca, cita, expõe
A flor do Silêncio
Além-mar
Asa e caneta
Para que haja sonho
Na cabeça das noivinhas
Rema
Novembrando no horizonte
Sol, onda e riso
E a força do silêncio
Cala o segredo na areia
Rolando por dentro dos nós
Maré de nós.

Marcela Anders Gorga

Morena






Que nas mãos me desperta
Ansia devoradora de maresia
E chicoteias as crinas orgulhosas das ondas

É o teu nome que a tarde aluada geme
No êxtase crepuscular entre as tuas curvas
Arrepiando picos no desvario nevado
Da boca da noite.

É no teu vale que se esconde
O nascedouro de estrelas em cascata
No qual se sacia a lua violeta.

É por ti que anoiteço
Até vires a mim
Para que eu amanheça.
Marcela Gorga

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Graça não é mulher




Graça não é mulher
mas fala manso,
rouco, ronronado,
ao pé do ouvido
e com olhos de gato.

Graça desgraça
e faz sofrer,
esgarça o peito
até gemer mas
mesmo assim, Graça
não deixo de querer.

Graça é minha ressaca,
meu espumante de Ano Novo,
alegria dopante de um recomeço.
Meu recomeço.

E com Graça me engraço,
devassa, me deixo, me largo,
arranho e me amo,
porque nela, dela, com ela
me banho.
Encanto.
Graça é Oceano.

Graça não é mulher.
É bendito e maldito,
sublimação e instinto,
dialético menino,
preto e branco,
água e fogo,
circulares, infinitos.
Auto-explicativo.


Joane Ferreira

Dezesseis de Junho no Campo de São Estevão.





Estevão quis conversar há uns dias. Marcou comigo e tomamos um trem. Mamãe sempre disse que ele não era normal. Imagine! No que é que pode dar essa amizade? Todo mundo tem um amigo louco com quem adora conversar, daquele tipo que aponta o caminho logo alí caso você decida olhá-lo e enfrentar a contramão social bebendo antes de dirigir caso decida tomá-lo. Ele olhava meu choro e dizia minha luz, eu sei do que você precisa! E sempre soube mesmo. Somos o verbete de escândalo andando juntos mais horas no dia do que as que passo com meu marido, esfalfado da dureza negra que arranca do solo. O pobre homem chega em casa mais sujo que a soleira da porta do bar e tudo o que ele quer é uma janta quente e uma esposinha morna para saciá-lo. E lá está Estevão, penteado, cheiroso e diplomado delirando em sua poltrona e soprando idéias nos meus ouvidos. E ficando para jantar. Mas meu pacato não se importa além do sorriso decepcionado com que me corta o coração. Os filhos já estão nascidos e são companheiros da colheita ao plantio. E um pouco da cultura de Estevão não há de lhes fazer mal, há? Não, não, mal algum, querida, é claro que ele pode jantar conosco...
Avisei a ele que me demorava quando a data chegou. Ele mal tocou o café, ouvindo atentamente que me demorava, que não tinha hora, mas é seu aniversário! Sim, é meu aniversário, por isso mesmo, mas não se preocupe que estarei com Estevão. Vamos tomar o trem, e... Acho que sempre esteve lá, mas só então percebi os olhos estreitos sob o cenho franzido, abriu a boca e preparei um Por-Deus-Martin-Não-Venha-Enciumar... Ele nada disse. Baixou o rosto e perguntou quase gaguejando se eu diría a ele, não é? Se fosse deixá-lo? Ora, que bobagem, querido, escondi o riso nervoso que ele soltou, dissipou-se a teia de tensão e saí. Ele disse algo para quê eu não tinha ouvidos. Ainda me pergunto o que eu esperava de Estevão naquela manhã.
Mal falamos no trem. Estevão era um outro sob seu chapéu. A cidade um labirinto cinzento de conhecimento e progresso fumarento. Ocorreu-me dizer que o trem andava graças ao meu manso, como o chamávamos às risadinhas, mas algo roeu a bainha da frase e não tive coragem de desembainhá-la para cortar o silêncio. Meu vestido florido parecia inadequado aos tons de cinza das ruas e olhos de Estevão. Finalmente ele perguntou como vai Martin, e esperei a frase assentar. Escapa-me até hoje se ele estranhou a demora. A existência de meu marido nunca parecera ser registrada por este meu amigo em particular, a não ser, talvez, como um empecilho um tanto embaraçoso às nossas tardes de conversa delirante e livre. Sua mãe casou-te para te afastar de mim, ele brincava diariamente, tirava o chapéu da chapeleira, a bengala, um beijo e se ía sem medo da chuva. Não gosto dele, mãe, os olhos graves de meu filho mais velho espreitavam a porta fechada. Mas devia. E devia era estar na cama, Daniel, tão parecido com o pai...
Sabe do que eu preciso, minha luz, ele disse sem muita certeza sequer de ter produzido aqueles sons. O bolo entre meus lábios valia um dia de Martin na mina. Do que Estevão poderia precisar? Prendi a respiração e o olhei como ele dizia que gostava, bem dentro dele. É por isso que só tenho uma amiga. A única capaz de buscar meus olhos como igual nesta rua, ele sempre disse que nossa cidade não passava de uma rua para quem tomava o trem e via o mundo e sabe do que você precisa, minha luz? Mas foi ele quem desviou o olhar para as nuvens ao lado de fora. Gotículas no vidro e o ar abafado dentro da casa de chá. Era ao lado de fora que eu queria estar. Foi como um raio. Larguei o garfo. Acho que o barulho o trouxe de volta, mas não aos meus olhos. Deslizou sua mão delicada pelos cabelos cuidadosamente penteados para trás. Suspirou intelectualmente aborrecido, como quem decide relevar minha gafe terrível. E disse é de um tiro de largada. È de um tiro de largada, reafirmou, é disso que preciso, minha luz.
Não sei por onde nem por quanto tempo vaguei, um rio correndo tão forte por dentro de mim que nenhum outro som existia. Obedeci meramente aos comandos autômatos, vagar, sentar, vagar. A chuva caía por dentro de mim para juntar-se ao rio. Tão caudalosa, puxando a mim mesma para a irresistível submersão onde não havia esclarecimento ou esquecimento; apenas vontade sem esteio. Escolhi não travar guerra com a natureza. Aquela era minha correnteza e o porto para qual me conduzisse seria o certo. Tomei o trem. A água cantava seguindo seu curso em uníssono.
Martin banhava-se. Era meu aniversário. O vento trovejava entre as casinhas e uivava nas esquinas. A lareira não o manteria aquecido, mas não seria o frio o impedimento de banhar-se para mim. Mesmo sem saber para onde ía meu trem. O verde de seus olhos espreitou a porta batida entre os cachos negros. Eu estava em seus braços num clarão. E o beijei olhando-o como igual. Ele despertou. Fizemos amor. Não fizemos perguntas.
Mais tarde, bem mais tarde, ele me perguntou como ía Estevão. Até estranhei o som do nome, parecia abafado, encoberto num turbilhão de bolhas, mas como não havia maldade em sua voz, respondi-lhe meramente que me levara à cidade para despedir-se. Meu marido ajeitou-se na cama e a preocupação estava lá na testa franzida que beijei, não, não, eu estou bem meu querido e estou de fato. No Campo de São Estevão eu já sabia para onde a água carregaria meu corpo sem peso, para onde mais? Barcelona, Paris, Londres, qualquer lugar que não seja uma rua, tua mãe te queria escrava daquele lugarejo, minha luz, eu posso oferecer mais para ti se estivermos juntos, tu não nascestes algemada àquele mineiro crasso... Desta vez, não houve bainha alguma para conter o corte, afinal, se viemos falar mal de Martin, porque aparentar algum respeito por ele, não é? Foi como quebrar em rocha. O que devia trazer constrangimento deixou-o aliviado, sim, realmente não havia porquê demonstrar respeito pelo homenzinho insignificante, ele meramente sondara para saber meus verdadeiros sentimentos por ele...
Um bom homem, sem dúvida, Martin aninhou-me achando que eu tremia de frio, desejo-lhe toda a sorte onde quer que vá. Tomou meu sorriso por admiração e mencionou sabe que eu tinha uma pontinha de ciúmes? Esse é o sentimento mais infundado do mundo, meu amor, eu lhe disse com a autoridade de quem correra de uma casa de chá recusando sonhos de adolescente quando finalmente estiveram ao meu alcance. Para voltar para onde eu já fora além do tiro de largada. Ele jamais deveria sentir-se diminuído, nobre que era meu Martin. Amei-o como um rei. Um dia, vamos conhecer o mundo, ele murmurou nos meus cabelos já entregue ao sono. Conseguiu me fazer rir e gargalhamos, afinal, de que mundo precisávamos? A terra dormiu sossegada pelos constantes carinhos da água.


Marcela Anders Gorga