quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Os O'Briens de Guaymallén





I



Velando o corpo de seu irmão Roderigo, Cristián Correa Venegas O’Brien ouvia os sussurros de toda a paróquia. O inverno de 1879 fora especialmente duro para os O’Briens de Guaymallén, diziam as velhas, encobertas por mantillas de renda negra e pelo lusco-fusco das velas. A meia-luz deixava seu irmão 8 anos mais moço belo, mesmo pálido e frio como estava. Coçou a barba não querendo ouvir mais pêsames pelo valente que ali jazia. Ele ainda parecia vivo, como dois dias antes, cavalgando o pampa, uma vez que o pescoço ficava escondido pelo colarinho da camisa e da casaca com que fora vestido com esmero por Rosário, fiel dama de companhia de sua finada Margareth. Ainda assim, não tinha coragem de tocá-lo. Sentou-se marejando os olhos por não ser capaz de encilhar o tempo, pois olhando no rosto dele lembrava-se ainda de sua esposa. Ouvira a peonada comentar entre um mate e outro que a doença a matara tão rápido que se agora abrissem a terra ela ainda estaria quente. Seu corpo enrijeceu enquanto colocava um cabresto na vontade de pôr a peonada a pontapés para correr dali. O silêncio enlutado de Rosário era seu único conforto. Ela não lhe fizera perguntas sobre o corpo de seu irmão em cima de seu baio. E agora não o atormentava com condolências. A raiva que lhe retorcia o rosto era na verdade o dique de sua represa.

Amara o piá desde que sua mãe o parira num pelego em Tierra Adentro. Limpara-o do sangue e dera-lhe o nome que o pai, morto de um balaço, escolhera. A alegria da mãe era saber o quanto Roderigo saíra ao irmão. Passaram os dois a infância no lombo de um pingo, entre bugres e grunhindo um castellano entrecortado de araucano desde cedo. Sua mãe, agora pó de estrada, montara a família e a mantivera unida pelos arreios com pulso de gaúcho. Roderigo não passava de um piá sob sua sombra de irmão homem feito quando se firmou o acordo entre ele e a filha dos estancieiros fugidos da Irlanda, em cuja casa hoje ainda vivia. O guri só aprendeu o inglês quando Cristián noivou com Maigréad – Margareth era o mais próximo do nome dela que ele conseguia pronunciar, então, para ele, era Margareth o nome dela. A irlandesa loura fora entregue a ele com um misto de medo e desejo. Ele aos poucos extinguira seu medo e se tornara o bom marido que os pais dela acreditavam que ele seria.

E foi quando o médico o conduziu ao escritório para dizer-lhe señor, não havia nada que pudesse ser feito, o veneno era muito rápido e forte, foi que a sanha colorada de sua vingança começou.




II



Na tarde de 21 de agosto de 1879, quando sob o implacável rugido dos ventos andinos, Cristián O’Brien trotou pelas escadarias de sua hacienda, percebeu-se pela primeira vez na tentativa vã de tolher o tempo pelas guampas. Esporeou o caminho até seus aposentos e um silêncio abateu-se sobre as aias à aparição de sua silhueta tangenciando os contornos do portal. Com súbita delicadeza, girou a maçaneta para cerrar o vento ao lado de fora. Apenas Rosário ficara, torcendo as mãos ansiosas. Expulsou-a com uma faísca de seus olhos azuis. Arrancou o poncho grosso e cambaleou até a cama atado por uma boleadeira invisível. Estacou à cabeceira, o corpo empedernido diante da agonia que viera testemunhar. Um detalhe ou outro inevitavelmente lhe escaparia ao longo dos anos, mas jamais deixaria o fundo de sua consciência o rosto sofrido de sua esposa em suas últimas horas. Não podia deixar de se perguntar que doença era essa que a derrubara num dia, e a ancorara à morte certa.

‘Margareth’, murmurou ao tomar a mão febril entre as suas, mas o inglês encilhado a muito custo para que se comunicassem escapou arisco, deixando-o a sós com o abismo da incompreensão abrindo-se sob as botas.

Ela não reagiu quando tombou sentado ao seu lado, inclinando o colchão e a cabeça febril, mas não a boa sorte em sua direção. Contentou-se em cismar sozinho, tropeçando em palavras inúteis permeando o pampa vazio em que deixou-se vagar conforme divisou o caminho que ela agora trilharia, alheia ao próprio corpo ou ao marido. Não podia ordenar que voltasse ou que cessassem os gemidos e as palavras estranhas; já não tinha o controle sobre aquela vontade ou aquele corpo. Mesmo agora, o som da voz de Margareth era um estranho com quem dividia o quarto, e não devido a dor que o distorcia. Ocorreu-lhe de súbito que não recordaria a voz dela, salvo talvez a palavra que a febre selecionara para fervorosa repetição. ‘Truth’, ela gemia e ele recordava o silêncio pacífico dela dormindo nua em seus braços ou lendo um novo livro ou cavalgando o baio que lhe dera quando se casaram. O silêncio sempre apadrinhara o companheirismo dos dois.

Acariciou-lhe os cachos loiros ao pôr outra compressa em sua fronte. A dor dela parecia-lhe excruciante. Lamentou que ela não acordasse para dizer o adeus, não conseguir falar-lhe uma última vez. Também o entristecia não conseguir recordar algo que ela pudesse compreender para saber-se na presença dele.

‘Truth’, então, tornou-se uma frase completa que ela gritou. Descorçoado pelo sofrimento óbvio nas feições delicadas, ele ergueu-lhe o corpo leve para aninhá-la e uma das palavras esporeou-o em meio ao movimento: Rory. Seu irmão, Roderigo. O piá aprendera com ela as maneiras e o refinamento que ao mais velho sempre pareceram rédeas indesejáveis, que faziam de um homem menos homem. Rory, sim, era assim que ela se referia ao guri. Sorriu. Ela sempre tivera carinho por Roderigo. Ele saberia o que ela esforçava-se para dizer... Dizer foi a segunda palavra que ele reconheceu e logo, numa carreira de levantar o pó do chão, o significado da frase galopou sobre seu pampa. Roderigo, tenho de dizer-lhe a verdade sobre Roderigo. O ar fraquejava trêmulo entre os gemidos dela.

A porta também gemeu com a força com que foi aberta. O trovão ultrajado de ser pego em sofrimento de Cristián morreu à visão de Roderigo às lágrimas, a mão ainda crispada no movimento de empurrar, os olhos verdes cravados na forma frágil jazendo nos braços do marido. Cachos sem cilha revoavam num minuano desesperado ao redor do rosto imberbe.

Duas verdades nasceram do espanto mútuo nos corações dos Venegas. Cônscios cada um do que seria sua verdade e epitáfio, o diálogo foi breve, pelejado por entre os dentes e olhos semi-cerrados.

‘Disseram-me que ela agonizava sozinha’, Roderigo admitiu não estar em território seu.

‘Eu não estava assim tão longe’, Cristián retrucou, ‘o capataz me alcançou ainda dentro da estância.’

No longo silêncio, ela insistiu sobre a verdade que tinha para contar a respeito de Roderigo gemendo nos braços de Cristián, que já desconfiava nesta altura da doença súbita de Margareth. ‘Do quê ela está falando’, ressoou sua voz de balaço, já acusando.

‘Não sei’, respondeu Roderigo. E não se falaram mais pois o médico chegara. O mesmo que diría a Cristián que o veneno fora rápido demais e confirmaria a verdade em seu coração. Já não precisava ouvir Roderigo. Os cascos do pingo dele já íam longe enquanto Cristián esperava sôfregamente ao lado da mulher que perdia. Correu com o médico dalí com duas frases curtas e umas moedas do cinturão.

Aninhou-a no silêncio do que não ousava admitir em voz alta, como se o tornasse menos homem aquela dor que o consumia, e a viu morrer levando como verdade o que era para ele a impunidade de seu algoz. E jurou-lhe vingança com um meio sorriso agoniado.



III


O bugre assistente do farmacêutico de Morón apareceu morto dia 28 de agosto de 1879. Ao abrir sua loja pela manhã o compadrito recém-chegado de Buenos Aires encontrou o assistente, descrito por ele como observador, educado e um exímio aprendiz, enforcado. A sinistra arma do crime? O corpo inerte de uma de suas cobras, atada com laço de gaúcho. Preso em seu peito um bilhete sugerindo alguma culpa excusa. Dizia apenas: "Arranquei-lhe a verdade por entre os dentes de víbora".



IV


Cristián chegou a hacienda de Roderigo antes do sol. Tinham uns couros para entregar, a jornada era longa e ele queria trilhá-la com o irmão, como costumavam fazer na juventude. Roderigo estava pronto para o irmão. Montou.

Seguiam num trote sem pressa, ataviados os dois nas melhores roupas, e punhais nas botas. Até as cartucheiras luziam do bom trato do dia anterior. Não se mata nem se morre como bugres, ouviram dum valente ao redor duma fogueira com o mate passando de mão em mão. Se dois valentes duelam, é justo que honrem um ao outro ataviando-se para a peleja. Os olhos de piás que ainda acreditavam em honra brilharam quando entreolharam-se sorrindo, prontos para lutarem ombro a ombro até a velhice.

Olhavam-se agora como dois estranhos. Já não se conheciam. Era com cautela que seguiam lado a lado, nenhum disposto a comer a poeira do outro ou a morrer de um balaço pelas costas. Apearam-se no nada do pampa para tomar uma fresca. E tudo aconteceu muito rápido.

Roderigo foi mais ligeiro e avançou sobre Cristián enquanto este ainda tinha um pé no estribo, disposto a matar o irmão mais velho pelo que fizera com a mulher que amara secretamente desde piá. Logo ela, ingênua, modesta e tão devotada a Cristián! Mesmo agora não compreendia a crueldade espontânea e desmotivada. Talvez ele tivesse uma amante e quisesse tomá-la por esposa? Já havia considerado todas as possibilidades. O espanto do que testemunhara antes ainda baixava-lhe a guarda numa paralisia do estranhamento do dia em que o irmão tornou-se outro homem. Não foi capaz de cravar-lhe a faca no bucho embora soubesse que o desalmado o merecia.

Cristián recuperou-se de pronto. Parte dele já sabia que de Roderigo só podia esperar traição. Agarrou-o pelos cabelos e pôs o punhal em sua garganta. Disse-lhe em seu triunfo amargo que matara o bugre com quem ele conseguira o veneno para dar cabo dela. E antes que Roderigo pudesse perguntar que bugre, sangrou-o alí mesmo.

Morto e não morto, Roderigo fitou o irmão com os olhos de entendimento, mas já não tinha forças para mais.

Cristián ajoelhou-se premeditado de tão vagaroso para assistir à agonia do que para ele era um porco degolado, nada mais. Mas os olhos de seu irmão cravaram garras de estranheza em seu bucho. Até os últimos dias de sua breve sobrevida à peleja, guardou para si que o irmão parecia balbuciar 'não foste tu, então...'.




V


Quando Cristián O'Brien morreu, em junho de 1886, a paz de ter vingado a mulher e a vontade de reencontrá-la deram-lhe o sorriso sereno com que foi velado por sua então amasiada, Rosário. Ele a tomou em silêncio como todas as noites depois da labuta e a dor no peito o atingiu rapidamente no sono. A dose que ela preparou para ele foi mais forte que a posta no desjejum da inglesa, junto com o qual levara-lhe o falso alarme de uma emboscada para o marido preparada por Roderigo. A verdade é aquilo em que se acredita. Rosário soube disso desde cedo. E para se fazer uma verdade não é preciso mais que confiança. Para o bugre com quem se deitara pelo frasco precioso, dissera prestar um favor a um tal Roderigo O'Brien. Ele, por sua vez, confiara a ela seu amor impossível. E com as cartas que a vida lhe deu, ela construiu seu próprio castelo.

Só precisou aguardar até a barriga aparecer, e Cristián faleceu inesperadamente, deixando para seu único filho uma fortuna considerável. Se chorou no enterro, foi porque o que ele não legou nem à barriga foi o amor legado à esposa.

Não foi, no entanto, o que o pequenino Roderigo ouviu de sua mãe. A verdade norteadora de sua estrela foi a de um pai amoroso, que lamentou não conhecê-lo em seu leito de morte.

3 comentários:

  1. Amei.....
    Que historia é essa?
    Essa eu não conhecia.
    E os Anormais quando vão aparecer??????????
    Bjs,
    Nat

    ResponderExcluir
  2. AH!
    Ontem ele num apareceu... Deve estar com algum atraso p atualizar... Esse foi um conto que escrevi pra um concurso literário. Mas num teve retorno positivo. Aí coloquei ele aqui...

    ResponderExcluir
  3. Sei lá ele é meio que sombrio........
    Talvez seja por isso.

    ResponderExcluir