domingo, 20 de dezembro de 2009

Meu encontro com Lacan aos pés da cerejeira

A paz de um dia de primavera. Sakuras* em flor, defloradas pelos dedos suaves da brisa matutina, lembram-me da delicadeza da vida. Pétalas ao vento, espalhadas em perfumes e lágrimas pelo ar. Destino incerto. A única certeza.

Esse é o eu único refúgio. O jardim das cerejeiras que só existem nos meus sonhos. Sei disso. Elas ficaram para trás, em Kyoto. É tudo que me lembro da minha infância. Meu pai, o tronco, e minha mãe, em flor, deflorada e espalhada pelo ar. Perfumada e chorosa. Meu pai imóvel.

Vim para a América casado, Yuriko já grávida de Ichigo. Um amigo conseguiu arrendar um pedaço de terra na costa oeste. Pretendia cultivar morangos. Eles eram gostosos, vendiam bem. As crianças gostavam de brincar entre eles e era preciso ralhar com elas para não danificarem as frutas. Havia muitos cedros perto das plantações. Austeros e imóveis. Lembravam meu pai.

Certo dia, Yuriko me perguntou o que eu fazia tanto embaixo dos cedros. Ela veio com Sakura, nossa recém-nascida nos braços. E respondi “procuro minha mãe, mas ela não aparece.” Naquele mesmo ano, uma grande enchente destruiu o campo de morangos. A colheita foi toda perdida. Com a chuva veio o cheiro do hakubai-ko** . Mais adocicado e sensual do que o da cerejeira, menos amadeirado do que o dos cedros. Todas as noites o perfume surgia e desaparecia. Mesmo dormindo ao relento, eu o sentia no meio da madrugada. As luzes da minha casa acendiam, apagavam-se poucos minutos depois.

No ano passado, Yuriko me deixou um bilhete. Tinha sido convidada para ir à New York com o senhor Thomas Weinstein, um banqueiro que passava as férias em nossa cidade. Ele havia lhe oferecido um emprego e boa escola para Ichigo e Sakura. Não sei ao certo depois de quanto tempo encontrei o papel meio amassado perto da lareira, mas já não me lembrava mais do hakubai-ko. Uma cerejeira tinha aparecido ao lado de dois cedros. O inverno já estava no fim e mamãe voltaria logo.

Agora estou aqui, senhor Lacan, e com a minha cerejeira. Insisti que ela ficasse lá fora, mas eu mesmo já não sou capaz de ficar sem ela. As flores irão com o fim da primavera, mas devo segurar o tronco para me assegurar de que estará aqui ano que vem. Sei que não estará. Mas quem pode prever o caminho que o vento irá fazer, não é mesmo?

O senhor Lacan limitou-se a assentir com a cabeça e checar o relógio.

Notas:

* Flores de cerejeira

** Perfume feito à base de flores de ameixeira, normalmente associado a prostitutas.

Um comentário:

  1. BEEEEM-VINDAAAAAAAAAAA!!!!!
    E já começou arrasando! É o melhor post do blog!

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