quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Sinos em Asakusa





Abrem-se as portas e adentramos o santuário. Oferendas e pedidos e papeletas com os ideogramas que desejamos para os próximos tempos... E o mal se esvai em badaladas até ficar só o nosso amor cantando baixinho no fôlego dos mantras dos monges. Nossos dedos se entrelaçam, sob a revoada de tsurus de papel. E os olhos nesse nó que não desata se perdem da noite para olhar só o coração.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Clepsidra


Alua
O fundo do teu castanho
Solar, coroa
Do tempo estendido, retorcido
Que te faz minha ampulheta
Clepsidra das nossas marés
Florais
Mel noturno dos silêncios
Em que galáxias explodem
Gratas
Completas.

Marcela Gorga

Amsterdam




Tempo bom. Chove um pouco menos na cidade em que as ruas transbordam. O cheiro vem do suor dele. Selvagem enquanto anda até a porta e as luzes. Ela não está na vitrine. Não esta noite, embora seja destaque.
O castanho vidrado varre a loja, sonda as luzes inebriadas pela fumaça doce. Doce Amsterdam!
Ela dança. Naquele olhar, a selvageria que ele esperava encontrar. Naqueles cachos queimando o olhar de tão ruivos. O som deles grudando nela é um tambor frenético. O ritmo em que ela o ignora é familiar, parte do jogo, da magia que os possui.
Ele dá passos firmes, previsíeis, ecoando no sorriso feiticeiro dela. A mão em seus quadris vibra anseios ocultos nadando para a superfície.
Anseios respirando pelo tempo que têm. As mãos vibrando cordas diferentes, curvas agudas, músculos graves. A chuva se aquieta para ouvir o trovão. O cheiro dela é igualmente selvagem, enlouquecido, criado na lua cheia, fazendo dele um lobo faminto por cada fresta e segredo dela até cantarem juntos e o tambor parar de ressoar no sangue.
Ela parece cera de vela enquanto ele se veste.
Ele sabe que ela já está pronta para o próximo. Que se faz de derretida.
Ela sabe que ele não vai conseguir ficar de pé. E que é lânguida que ele a pinta. E esculpe...
"Goodbye, Layla."
Ele sabe que tem de ser duro. Que não deve voltar.
"See you tomorrow, Aidan."
Ela sabe que ele vai voltar. Sempre volta.
Ela sabe que seu nome não é Aidan.
Ele sabe que ela não é Layla. Mas que o põe de joelhos.
E isso basta. Para ambos.

Publicado pela primeira vez na comunidade "Conte Como Eu Conto", no orkut. É uma ótima comunidade! Confiram!

Tokyo.





Nunca perdoarei o misticismo de Tokyo. Piscam essas marquises alucinantes, lancinantes, ambulantes, alienantes, tantas luzes! Aleluia! O sinal abriu! Esse misticismo que se descasca, desfolha e desfaz em iluminadores pontilhados ou botões mortos de rosa. Nem nos túneis assombrados do metrô meus olhos descansam! Procurando refúgio, minha fotofobia ainda esbarra em spots pendurados modestamente aqui e alí, oferecendo compensações. Ao menos, não é Paris. Senão, minha fuga elétrica seria rançosa, matando gambás de desgosto pelo caminho. Nem adianta jogar perfume francês no ar...
Mas antes fosse a nossa Dublin. A nossa Howth da qual não te dissocio. Lá a dor seria suportável, longe dos olhos de outdoor Maybelline e dessa fala cacófona, estridente que te faz tão urbana, meu oposto. Meu complemento. Mas Dublin ainda me espera um tempo, porque te refugiastes nela. Trocamos de lugar. Enquanto fazes voto de silêncio, tento um afogamento nessa luz que me fez desviar o olhar e decretar nosso fim. Maldita Tokyo, nada mística vista do teu vôo para nossa casa.

Marcela Anders Gorga

Postado também na comunidade "Conte Como Eu Conto", no orkut.

Negativo.




Eu, negativo teu, cacho, córnea, curvas mesmas enantiomorfas na superexposição do delírio. Era febre ou o sol na lente deu à luz tua imagem? Tua imagem minha, um gosto doce no fundo da boca sopranando êxtase no vale entre os teus lábios. O instante primitivo espraiado no entardecer dos nossos sentires confusos. Pele contra pele na seqüência muda derretendo o concreto que soterra céu e sonho. Suspiro sem som que não vem do mar se dobrando na areia, mas do patchwork dos nossos corpos. Espuma esfumaça olhos marejados, sombreados pelas nuances gloriosas da paixão, desfoca a entrega e anoitece os contornos gelatinosos da realidade. Gelatina de prata projetando fantasias para minha alma vendo em vermelho. Desvario de câmara escura. Expostos, desejos em negativo revelam apenas a solidão de um único corpo em preto e branco. Não nos impusemos, nem expusemos. Siamo in due. Superexposta, apago minha existência para guardar apenas fotos tuas.
Marcela Gorga

Postado também na comunidade "Conte Como Eu Conto", no orkut.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Meu encontro com Lacan aos pés da cerejeira

A paz de um dia de primavera. Sakuras* em flor, defloradas pelos dedos suaves da brisa matutina, lembram-me da delicadeza da vida. Pétalas ao vento, espalhadas em perfumes e lágrimas pelo ar. Destino incerto. A única certeza.

Esse é o eu único refúgio. O jardim das cerejeiras que só existem nos meus sonhos. Sei disso. Elas ficaram para trás, em Kyoto. É tudo que me lembro da minha infância. Meu pai, o tronco, e minha mãe, em flor, deflorada e espalhada pelo ar. Perfumada e chorosa. Meu pai imóvel.

Vim para a América casado, Yuriko já grávida de Ichigo. Um amigo conseguiu arrendar um pedaço de terra na costa oeste. Pretendia cultivar morangos. Eles eram gostosos, vendiam bem. As crianças gostavam de brincar entre eles e era preciso ralhar com elas para não danificarem as frutas. Havia muitos cedros perto das plantações. Austeros e imóveis. Lembravam meu pai.

Certo dia, Yuriko me perguntou o que eu fazia tanto embaixo dos cedros. Ela veio com Sakura, nossa recém-nascida nos braços. E respondi “procuro minha mãe, mas ela não aparece.” Naquele mesmo ano, uma grande enchente destruiu o campo de morangos. A colheita foi toda perdida. Com a chuva veio o cheiro do hakubai-ko** . Mais adocicado e sensual do que o da cerejeira, menos amadeirado do que o dos cedros. Todas as noites o perfume surgia e desaparecia. Mesmo dormindo ao relento, eu o sentia no meio da madrugada. As luzes da minha casa acendiam, apagavam-se poucos minutos depois.

No ano passado, Yuriko me deixou um bilhete. Tinha sido convidada para ir à New York com o senhor Thomas Weinstein, um banqueiro que passava as férias em nossa cidade. Ele havia lhe oferecido um emprego e boa escola para Ichigo e Sakura. Não sei ao certo depois de quanto tempo encontrei o papel meio amassado perto da lareira, mas já não me lembrava mais do hakubai-ko. Uma cerejeira tinha aparecido ao lado de dois cedros. O inverno já estava no fim e mamãe voltaria logo.

Agora estou aqui, senhor Lacan, e com a minha cerejeira. Insisti que ela ficasse lá fora, mas eu mesmo já não sou capaz de ficar sem ela. As flores irão com o fim da primavera, mas devo segurar o tronco para me assegurar de que estará aqui ano que vem. Sei que não estará. Mas quem pode prever o caminho que o vento irá fazer, não é mesmo?

O senhor Lacan limitou-se a assentir com a cabeça e checar o relógio.

Notas:

* Flores de cerejeira

** Perfume feito à base de flores de ameixeira, normalmente associado a prostitutas.

Hiragana


Numa alça de mira
Está a bolsa
Na qual carrego as minhas escolhas

Vejo por dentro de um buraco de agulha
Um circo em que homens são pulgas
Aperto o gatilho

E estilhaço orelhas com um grito que não tem som
O ar vibra entre consciências mudas
Do que achamos que somos

Brincando de ser num jogo de achar e perder
O silabário primordial
Esse verbo calado

Em torno do qual fingimos silêncio.

Marcela Anders Gorga.

Necrofilia e Narcisismo



(ISSO SIM É UM VAMPIRO... Imagem de um vampiro do clan Tzimisce, criação da White Wolf. A imagem não me pertence, muito menos a marca. Quem dera... Estaria rica...)

Venho pensando muito em vampiros. E no sucesso atual destas alegorias de eternidade. Tenho familiaridade com a mitologia da coisa como ex-jogadora de rpg. E fui apresentada a um tipo de visão, a do jogo, muito diferente do mais novo pasteurizado litarário e cinematográfico (não era uma consequência óbvia?) sobre o tema. Claro, que nada é mais divertido que a variedade. Mas eu gostaria TANTO que a variedade fosse AO MENOS inteligente... A visão que conheço do tema foi criada levando em conta a mitologia européia medieval sobre mortos que vagam em busca de sangue alheio. São criaturas corruptas, que deviam estar enterradas. São representações retóricas de vícios e do inferno, criadas para provocar temor e ilustrar um meio de vida que deveria ser evitado. Devia-se temer virar um vampiro. Estar morto em vida devido à sedução de um servo do inimigo público número um da época, ou seja, nosso querido e muito conhecido, Lú. Eu não creio nem em Deus, nem no Diabo, vale adiantar. Mas tenho um profundo respeito pelo poder de criação da mente humana. E o que a mente humana criou foi uma representação pavorosa do que é estar morto e vivo ao mesmo tempo. Conseguem imaginar o coração não bater? O pulmão não mexer? As sensações experimentadas por quem perdeu seus membros, quando, de fato, eles estão alí? A excitação sexual não existir a não ser através do cheiro do sangue de outra pessoa? Esse é um vampiro.
Agora, passemos ao vampiro por dentro. Para entrar para o time dessas fabulossas alegorias pestilentas deve-se errar, pecar, na definição medieval. Um vampiro não força; ele seduz. Se você foi seduzido, é porque seu caráter não resistiu. Logo, ser um vampiro é um certificado de poço de vícios ambulantes. Aqui vai a primeira batida do meu aríete: Ser um vampiro e ser uma boa pessoa são grandezas inversamente proporcionais.
Sigamos, pois esse texto é um exercício de impaciência e eu creio estar sendo clara o suficiente.
No século XIX, muitas dessas alegorias de pavor sofreram mudanças. Isso se deve a uma espécie de fascínio pela morte que as novas concepções de amor usaram de veículo para fascinar jovenzinhas de corpo mole e inclinações ainda mais indolentes. A atração por cemitérios, venenos e figuras obscuras de preto que traziam Síndrome de Estocolmo escrito na testa levou milhares delas ao único lugar onde poderiam chegar: ao túmulo. Bem cedo. As taxas de mortalidade de mulheres jovens na Inglaterra vitoriana fala por si. Não estou contando as mortes por parto. Se chegaram à tanto, já não eram jovenzinhas moles e suas inclinações, quaisquer que fossem, já passavam mais perto de ter a casa abastecida do que da indolência de um romance recheado de tolices. Tolice, aliás, é o sinônimo perfeito para essa concepção folhetinesca de amor que se vulgarizou e se mantém viva até hoje.
O marco que quero estabelecer para o século XIX é o livro de Bram Stoker. Seu Drácula passa longe de ser humano, em qualquer sentido da palavra. Não era humano nem quando era vivo. Tinha por hobby o empalamento. Usa a todos os personagens para seus próprios propósitos e quer tomar a mulher de Harker por ela se parecer com uma antiga companheira. E Mina Harker, é importante dizer, nutre uma repulsa violenta por ele. Ela não é capaz de amar um morto-vivo que ainda por cima, tentou matar o marido dela. Logo, mesmo em meio ao teatro de amor e morte vitoriano, vampiros não circulavam nas rodas provocando os suspiros de jovenzinhas moles. Elas costumavam preferir protagonistas VIVOS. Indolência, sim. Mas a necrofilia ainda não estava no cardápio das mocinhas de rosto corado e vestidos de cintura alta.
Vamos ao ponto central da análise. Essa súbita paixão por mortos que se dissemina entre garotinhas de corpo mole dos 12 aos 70 anos. Os vampiros voltaram a fazer parte do meu cotidiano por menções constantes ao hit do momento. Desde o início, já não sentia vontade de ler os romances. Não sinto vontade de perder tempo com histórias que subestimam a inteligência dos adolescentes. E já não sou adolescente há muito tempo. Nos moldes do que se entende por adolescência, eu nunca fui. Sempre dei muito valor ao meu cérebro. E acho uma pena que a juventude de agora não se dê o mesmo valor. Mas, como tento manter minha cabeça aberta, e uma pessoa próxima se afeiçoou ao vampiro protagonista, fui me inteirar do assunto. E estou aqui para ser linchada em praça pública pelas garotinhas enlouquecidas porque não vejo na saga motivo algum para esse desespero de marketing. Na verdade, minha opinião à respeito é até um pouco pior. A proposta do livro é nauseante para mim, que sou entusiasta da vida. Não gosto de necrofilia. E o vampiro adolescente de 200 anos em questão está, antes de mais nada, morto. Algum homem morto é capaz de satisfazer uma mulher, ou outro homem? Hmmm...
Mas antes que me digam que eu não sei apreciar a fantasia da coisa (e fantasia tem mesmo muitos sentidos, não é?), tenho algo mais a salientar. A autora, quer ela admita, quer não, foi apresentada a esse universo da mesma forma que eu. Logo, ela está tangenciando perigosamente a criação de uma corporação de entretenimento e usando coisas que outros criaram para lucrar. E isso no mundo do "gênio" como contraponto do "engenho", é antiético. Não aprecio posições antiéticas. E não aprecio trabalhos tecnicamente mal-feitos. E uma emulação mal-feita de um jogo de rpg misturado a uma soap-opera adolescente é, por definição, um trabalho mal-feito.
Não quero mais me deter na técnica. Prefiro voltar à necrofilia. Desenvolvi uma certa predileção pelo tema observando o comportamento do público do livro, em especial, o estranho desejo de amar um morto. E não é qualquer morto... Trata-se de um menino morto há 200 anos, mais do que decomposto por dentro, por assim dizer. "Ele é um cara legal, só se alimenta de sangue humano, nada demais...". Já apresentei na introdução os motivos pelos quais "vampiro" e "cara legal" não deviam se referir a uma mesma pessoa. Logo, o senhor adolescente de 200 anos (isso é mesmo possível? Que um personagem viva 200 anos e continue com a falta de maturidade de um adolescente?) não é um "cara legal". Ele é algo morto e não morto que se alimenta de sangue de gente e não tolera o sol. E, alegoricamente, basta dizer que até Dorian Gray desfilava seu rosto perfeito à luz do dia. E, inevitávelmente, vêm as advogadas de defesa. As Darwinistas, que defendem a causa da cadeia alimentar: "Mas ele não bebe sangue de gente... Só de animais!". E as vegetarianas: "Nem isso! Eles bebem de bancos de sangue! Não maltratam animaizinhos!"... E de onde será que vem o sangue dos bancos de sangue? Hmmm... Valendo uma bala Juquinha, meninas!
Chega de brincar. Quais serão as raízes dessa necrofilia em massa? Vamos tentar Freud. Seria esse vampiro um líder carismático? Que tipo de fascínio um personagem ficcional pode exercer para se tornar objeto de libido apesar de estar morto há dois séculos? E que tipo de fascínio as questões de morte exercem na autora, que fez um exercício de libido adolescente escapar na forma de um morto para as prateleiras de livrarias do mundo inteiro?
Vamos às características do personagem. A definição mais interessante que ouvi a respeito dele ser o "homem perfeito" foi sobre ele supostamente se sacrificar e abandonar a tudo e a todos por sua amada mortal. Hmm... Merece ponderação. Ele age como se tivesse dezenove anos, quando tem duzentos e dezenove. Logo, a vida longa não ensinou nada a ele. Ele supostamente é um personagem marcado pela dor. Mas que dor é essa? A dor de ter uma família de iguais, que ele nunca perderá, já que já estão todos mortos, e de viver com MUITO conforto? A dor de frequentar o sistema educacional americano quando ele já tem idade para ter feito o segundo grau umas cento e oitenta vezes? (Isso sim, deve incomodar...). Fica melhor... É por causa dessa suposta "dor" que ele adia o inevitável clichê de transformá-la em algo morto como ele. Deve ser porque ele leu no gibi do Homem-Aranha que "grandes poderes trazem grandes responsabilidades". Mas adiar a morte pela qual ela tanto anseia, e pela qual ele também anseia não é exatamente sacrificar algo por amor... É impedir a consumação do amor, e o que é pior: isso tem o único propósito de compensar a falta de um enredo decente. Ele sacrifica O AMOR para não ser o "monstro" que a matou, sendo que a morte é algo normal para ele. ELE impede o amor para manter as mãos limpas. Isso é o máximo de egoísmo ao qual se pode chegar. Negar ao objeto de seu desejo a felicidade por razões de consciência que, no fim das contas, não existem. Porque, se realmente houvesse um dilema de consciência, o desfecho da saga seria outro. Mas, desfechos melosos vendem mais. Ainda sobre o tema do egoísmo dele. Depois de decidir não permitir que o amor dos dois se realize para não ter que pensar mal de si mesmo, ele resolve ir para o outro lado do mundo se matar para salvar os irmãos.NÃO ELA, que quase morre de várias maneiras por causa da loucura necrófila não realizada. Ele se mantém indiferente às tentativas de suicídio e aos perigos dela. Ela já não é mais seu encargo. Ao invés de cuidar dela, a quem ele tanto ama, ele se desliga em busca do próprio suicídio, num lampejo melodramático que em nada combina com alguém que supostamente tem uma vastíssima experiência de "vida".Que amor é esse? E é ela quem tem que salvar a vida doaquele que a abandonou, como se ele fosse a vítma das circunstâncias.Coloca-se a pergunta: É esse o personagem que "abandona tudo por sua amada"? Que a coloca "em primeiro lugar"? Aonde está essa dedicação incondicional? Eu só vejo o mais puro egoismo. Mas eles ficam juntos no final, é claro. O clichê tem que estar lá para garantir as vendas e a consumação da libido necrófila em massa. Logo, que venha a prole nascida do ventre de uma morta que foi, por sua vez, fecundada por um morto. Reina a felicidade mais bizarra da literatura norte-americana. Isso podia ser o mote de um livro de Stephen King. Do que será que a criança se alimenta? Será sangue o suficiente, ou será que ela precisa de carne também? Por sorte, King paira muito acima dos roteiros pobres.
Para concluir, vamos à segunda palavra do título. Porque cobiçar e pintar um personagem sem estofo e anormal e confundí-lo com um tipo de homem ideal é um narcisismo necrófilo e masoquista, que vem de uma necessidade de fugir da realidade, procurando um homem que não existe para justificar a falha em lidar com o próprio egoísmo. Parte-se para a procura de um par desprovido de personalidade, porque é mais fácil para alguém sem personalidade se anular e bajular seu par. Da mesma maneira que ele esqueceu a própria consciência para se render aos desejos de morte dominantes dela, o tipo que se tornou ideal devido ao personagem é egoísta, mas não tem personalidade o suficiente para sustentar seus desejos, sucumbindo à pressão da presença que considera dominante no relacionamento. Cabe a alguém advertir os incautos: ISSO NÃO É AMOR. É o pior tipo de relação de dominação que existe. Não passa de uma união de pessoas desprovidas de personalidade, um duelo de egos disfarçado de amor. E o fenômeno de massa que é agora a procura por esse tipo de "amor", somado à distorção de alegorias de vício e medo em personagens "normais" com quem se pode conviver e em quem se pode espelhar e a quem se pode amar são sintomas do tipo de câncer terminal que estamos nos tornando. É um tipo de transformação. A humanidade vampirizando o que é ser humano. Daí esse sucesso do livro mais monótono e previsível da década. Desculpem, fãs, mas essa saga me enoja. Ela representa algo que eu jamais quero me tornar. Vou voltar para o meu Oscar Wilde. Ele ainda trata loucura como loucura e doença como doença.

Sugestões de leitura: "O Retrato de Dorian Gray" - Oscar Wilde - para noções irônicas de certo e errado
"Voragem" - Jun'Ichiro Tanizaki - Para distinguir doença de amor
"Muito Barulho Por Nada" - Shakespeare - Para entender q amor entre tolos orgulhosos é risível
"Do Amor e Outros Demônios" - Gabriel García Marquez - Para apreciar a dor do amor filial que se perde. Um amor real.
"O Conde de Montecristo" - Alexandre Dumas - Para noções de romance e ética
" Primeiro Amor" - Samuel Beckett - Para entender o que é o amor para um adolescente e o que é a sarjeta do orgulho.
"Uma Estrela Chamada Henry" - Roddy Doyle - Para entender que certo e errado podem variar... Mas nem tanto. E que agir errado traz um preço caro.
"Night Shift" - Dermot Bolger - Para olhar nos olhos tenebrosos, sem fantasias de mortos-vivos, de um amor movido pelo orgulho.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Arashi (Tempestade)




Até que o teu suspiro me ensurdeça
Até que o teu peso me esmague
Até que o nosso amor se consume
Troveja que é minha,
E me liquefaça.

Marcela Gorga

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Os O'Briens de Guaymallén





I



Velando o corpo de seu irmão Roderigo, Cristián Correa Venegas O’Brien ouvia os sussurros de toda a paróquia. O inverno de 1879 fora especialmente duro para os O’Briens de Guaymallén, diziam as velhas, encobertas por mantillas de renda negra e pelo lusco-fusco das velas. A meia-luz deixava seu irmão 8 anos mais moço belo, mesmo pálido e frio como estava. Coçou a barba não querendo ouvir mais pêsames pelo valente que ali jazia. Ele ainda parecia vivo, como dois dias antes, cavalgando o pampa, uma vez que o pescoço ficava escondido pelo colarinho da camisa e da casaca com que fora vestido com esmero por Rosário, fiel dama de companhia de sua finada Margareth. Ainda assim, não tinha coragem de tocá-lo. Sentou-se marejando os olhos por não ser capaz de encilhar o tempo, pois olhando no rosto dele lembrava-se ainda de sua esposa. Ouvira a peonada comentar entre um mate e outro que a doença a matara tão rápido que se agora abrissem a terra ela ainda estaria quente. Seu corpo enrijeceu enquanto colocava um cabresto na vontade de pôr a peonada a pontapés para correr dali. O silêncio enlutado de Rosário era seu único conforto. Ela não lhe fizera perguntas sobre o corpo de seu irmão em cima de seu baio. E agora não o atormentava com condolências. A raiva que lhe retorcia o rosto era na verdade o dique de sua represa.

Amara o piá desde que sua mãe o parira num pelego em Tierra Adentro. Limpara-o do sangue e dera-lhe o nome que o pai, morto de um balaço, escolhera. A alegria da mãe era saber o quanto Roderigo saíra ao irmão. Passaram os dois a infância no lombo de um pingo, entre bugres e grunhindo um castellano entrecortado de araucano desde cedo. Sua mãe, agora pó de estrada, montara a família e a mantivera unida pelos arreios com pulso de gaúcho. Roderigo não passava de um piá sob sua sombra de irmão homem feito quando se firmou o acordo entre ele e a filha dos estancieiros fugidos da Irlanda, em cuja casa hoje ainda vivia. O guri só aprendeu o inglês quando Cristián noivou com Maigréad – Margareth era o mais próximo do nome dela que ele conseguia pronunciar, então, para ele, era Margareth o nome dela. A irlandesa loura fora entregue a ele com um misto de medo e desejo. Ele aos poucos extinguira seu medo e se tornara o bom marido que os pais dela acreditavam que ele seria.

E foi quando o médico o conduziu ao escritório para dizer-lhe señor, não havia nada que pudesse ser feito, o veneno era muito rápido e forte, foi que a sanha colorada de sua vingança começou.




II



Na tarde de 21 de agosto de 1879, quando sob o implacável rugido dos ventos andinos, Cristián O’Brien trotou pelas escadarias de sua hacienda, percebeu-se pela primeira vez na tentativa vã de tolher o tempo pelas guampas. Esporeou o caminho até seus aposentos e um silêncio abateu-se sobre as aias à aparição de sua silhueta tangenciando os contornos do portal. Com súbita delicadeza, girou a maçaneta para cerrar o vento ao lado de fora. Apenas Rosário ficara, torcendo as mãos ansiosas. Expulsou-a com uma faísca de seus olhos azuis. Arrancou o poncho grosso e cambaleou até a cama atado por uma boleadeira invisível. Estacou à cabeceira, o corpo empedernido diante da agonia que viera testemunhar. Um detalhe ou outro inevitavelmente lhe escaparia ao longo dos anos, mas jamais deixaria o fundo de sua consciência o rosto sofrido de sua esposa em suas últimas horas. Não podia deixar de se perguntar que doença era essa que a derrubara num dia, e a ancorara à morte certa.

‘Margareth’, murmurou ao tomar a mão febril entre as suas, mas o inglês encilhado a muito custo para que se comunicassem escapou arisco, deixando-o a sós com o abismo da incompreensão abrindo-se sob as botas.

Ela não reagiu quando tombou sentado ao seu lado, inclinando o colchão e a cabeça febril, mas não a boa sorte em sua direção. Contentou-se em cismar sozinho, tropeçando em palavras inúteis permeando o pampa vazio em que deixou-se vagar conforme divisou o caminho que ela agora trilharia, alheia ao próprio corpo ou ao marido. Não podia ordenar que voltasse ou que cessassem os gemidos e as palavras estranhas; já não tinha o controle sobre aquela vontade ou aquele corpo. Mesmo agora, o som da voz de Margareth era um estranho com quem dividia o quarto, e não devido a dor que o distorcia. Ocorreu-lhe de súbito que não recordaria a voz dela, salvo talvez a palavra que a febre selecionara para fervorosa repetição. ‘Truth’, ela gemia e ele recordava o silêncio pacífico dela dormindo nua em seus braços ou lendo um novo livro ou cavalgando o baio que lhe dera quando se casaram. O silêncio sempre apadrinhara o companheirismo dos dois.

Acariciou-lhe os cachos loiros ao pôr outra compressa em sua fronte. A dor dela parecia-lhe excruciante. Lamentou que ela não acordasse para dizer o adeus, não conseguir falar-lhe uma última vez. Também o entristecia não conseguir recordar algo que ela pudesse compreender para saber-se na presença dele.

‘Truth’, então, tornou-se uma frase completa que ela gritou. Descorçoado pelo sofrimento óbvio nas feições delicadas, ele ergueu-lhe o corpo leve para aninhá-la e uma das palavras esporeou-o em meio ao movimento: Rory. Seu irmão, Roderigo. O piá aprendera com ela as maneiras e o refinamento que ao mais velho sempre pareceram rédeas indesejáveis, que faziam de um homem menos homem. Rory, sim, era assim que ela se referia ao guri. Sorriu. Ela sempre tivera carinho por Roderigo. Ele saberia o que ela esforçava-se para dizer... Dizer foi a segunda palavra que ele reconheceu e logo, numa carreira de levantar o pó do chão, o significado da frase galopou sobre seu pampa. Roderigo, tenho de dizer-lhe a verdade sobre Roderigo. O ar fraquejava trêmulo entre os gemidos dela.

A porta também gemeu com a força com que foi aberta. O trovão ultrajado de ser pego em sofrimento de Cristián morreu à visão de Roderigo às lágrimas, a mão ainda crispada no movimento de empurrar, os olhos verdes cravados na forma frágil jazendo nos braços do marido. Cachos sem cilha revoavam num minuano desesperado ao redor do rosto imberbe.

Duas verdades nasceram do espanto mútuo nos corações dos Venegas. Cônscios cada um do que seria sua verdade e epitáfio, o diálogo foi breve, pelejado por entre os dentes e olhos semi-cerrados.

‘Disseram-me que ela agonizava sozinha’, Roderigo admitiu não estar em território seu.

‘Eu não estava assim tão longe’, Cristián retrucou, ‘o capataz me alcançou ainda dentro da estância.’

No longo silêncio, ela insistiu sobre a verdade que tinha para contar a respeito de Roderigo gemendo nos braços de Cristián, que já desconfiava nesta altura da doença súbita de Margareth. ‘Do quê ela está falando’, ressoou sua voz de balaço, já acusando.

‘Não sei’, respondeu Roderigo. E não se falaram mais pois o médico chegara. O mesmo que diría a Cristián que o veneno fora rápido demais e confirmaria a verdade em seu coração. Já não precisava ouvir Roderigo. Os cascos do pingo dele já íam longe enquanto Cristián esperava sôfregamente ao lado da mulher que perdia. Correu com o médico dalí com duas frases curtas e umas moedas do cinturão.

Aninhou-a no silêncio do que não ousava admitir em voz alta, como se o tornasse menos homem aquela dor que o consumia, e a viu morrer levando como verdade o que era para ele a impunidade de seu algoz. E jurou-lhe vingança com um meio sorriso agoniado.



III


O bugre assistente do farmacêutico de Morón apareceu morto dia 28 de agosto de 1879. Ao abrir sua loja pela manhã o compadrito recém-chegado de Buenos Aires encontrou o assistente, descrito por ele como observador, educado e um exímio aprendiz, enforcado. A sinistra arma do crime? O corpo inerte de uma de suas cobras, atada com laço de gaúcho. Preso em seu peito um bilhete sugerindo alguma culpa excusa. Dizia apenas: "Arranquei-lhe a verdade por entre os dentes de víbora".



IV


Cristián chegou a hacienda de Roderigo antes do sol. Tinham uns couros para entregar, a jornada era longa e ele queria trilhá-la com o irmão, como costumavam fazer na juventude. Roderigo estava pronto para o irmão. Montou.

Seguiam num trote sem pressa, ataviados os dois nas melhores roupas, e punhais nas botas. Até as cartucheiras luziam do bom trato do dia anterior. Não se mata nem se morre como bugres, ouviram dum valente ao redor duma fogueira com o mate passando de mão em mão. Se dois valentes duelam, é justo que honrem um ao outro ataviando-se para a peleja. Os olhos de piás que ainda acreditavam em honra brilharam quando entreolharam-se sorrindo, prontos para lutarem ombro a ombro até a velhice.

Olhavam-se agora como dois estranhos. Já não se conheciam. Era com cautela que seguiam lado a lado, nenhum disposto a comer a poeira do outro ou a morrer de um balaço pelas costas. Apearam-se no nada do pampa para tomar uma fresca. E tudo aconteceu muito rápido.

Roderigo foi mais ligeiro e avançou sobre Cristián enquanto este ainda tinha um pé no estribo, disposto a matar o irmão mais velho pelo que fizera com a mulher que amara secretamente desde piá. Logo ela, ingênua, modesta e tão devotada a Cristián! Mesmo agora não compreendia a crueldade espontânea e desmotivada. Talvez ele tivesse uma amante e quisesse tomá-la por esposa? Já havia considerado todas as possibilidades. O espanto do que testemunhara antes ainda baixava-lhe a guarda numa paralisia do estranhamento do dia em que o irmão tornou-se outro homem. Não foi capaz de cravar-lhe a faca no bucho embora soubesse que o desalmado o merecia.

Cristián recuperou-se de pronto. Parte dele já sabia que de Roderigo só podia esperar traição. Agarrou-o pelos cabelos e pôs o punhal em sua garganta. Disse-lhe em seu triunfo amargo que matara o bugre com quem ele conseguira o veneno para dar cabo dela. E antes que Roderigo pudesse perguntar que bugre, sangrou-o alí mesmo.

Morto e não morto, Roderigo fitou o irmão com os olhos de entendimento, mas já não tinha forças para mais.

Cristián ajoelhou-se premeditado de tão vagaroso para assistir à agonia do que para ele era um porco degolado, nada mais. Mas os olhos de seu irmão cravaram garras de estranheza em seu bucho. Até os últimos dias de sua breve sobrevida à peleja, guardou para si que o irmão parecia balbuciar 'não foste tu, então...'.




V


Quando Cristián O'Brien morreu, em junho de 1886, a paz de ter vingado a mulher e a vontade de reencontrá-la deram-lhe o sorriso sereno com que foi velado por sua então amasiada, Rosário. Ele a tomou em silêncio como todas as noites depois da labuta e a dor no peito o atingiu rapidamente no sono. A dose que ela preparou para ele foi mais forte que a posta no desjejum da inglesa, junto com o qual levara-lhe o falso alarme de uma emboscada para o marido preparada por Roderigo. A verdade é aquilo em que se acredita. Rosário soube disso desde cedo. E para se fazer uma verdade não é preciso mais que confiança. Para o bugre com quem se deitara pelo frasco precioso, dissera prestar um favor a um tal Roderigo O'Brien. Ele, por sua vez, confiara a ela seu amor impossível. E com as cartas que a vida lhe deu, ela construiu seu próprio castelo.

Só precisou aguardar até a barriga aparecer, e Cristián faleceu inesperadamente, deixando para seu único filho uma fortuna considerável. Se chorou no enterro, foi porque o que ele não legou nem à barriga foi o amor legado à esposa.

Não foi, no entanto, o que o pequenino Roderigo ouviu de sua mãe. A verdade norteadora de sua estrela foi a de um pai amoroso, que lamentou não conhecê-lo em seu leito de morte.

Maria





Lagunua
Nada na lua
Maria
Minha irmã
Meu macho
Minha fêmea
Minha Maria
Jasmim deitando olhos
Na joaninha
Espadanua água
Maria nua
E me enluara os olhos
Nos vales, no montes, nos picos
Prateia laguna sua
Sua, Maria, sua
Minha Maria
Minha?
Alua.
Marcela Gorga