segunda-feira, 4 de abril de 2011

Leis da Física

Às vezes ficam uns vazios, formam-se uns bolsões de silêncio entre nós que me tiram o tino, Morena... Disse à você que todo o ser humano é feito de sessenta por cento de água, vinte por cento de covardia e vinte de loucura... Mas você não acredita... Não acredita em mim nem em você, não desafia as leis da física...

E eu salto sozinho, salto por esses buracos até a hora em que eu não puder saltar... E como faço então? Vou gritar, vou socar as paredes, vou socar seus pais pra que eles parem de me garfar e me engulam de uma vez? Morena... O coração aguenta? Diz pra mim, você que chora no meu ombro, por quanto tempo eu vou conseguir dizer que está tudo bem? E quando esse amor me amputar as pernas?

Eu salto, morena, eu salto. O coração não precisa delas, não precisa de nada mais que esse seu sorriso que me desconstrói tijolo por tijolo e fico alijado das insígnias duras de ser um homem... Mas cheio de medalhas de salto...

Owen O'Hagan, campeão de alguma coisa interna indiscutível na faculdade... Intangível e incômodo esse... Esse... Esse Isso, essa nova gravidade que me permite saltar muros impossíveis contanto que atado a esse seu coração grande e gentil entrincheirado nos seus medos, nesse calundú pior que palavras duras, eu enfrento, Morena... Só me acovardo com o seu silêncio... É um tiro no estômago, um desentranhamento, um nó de mim... Meus vinte por cento de pernas tremendo que nem era com o Velho... Mas é pior que o Velho porque eu te amo e você não vai me surrar por isso... Não... Surrar não... Mas me deixar...

Sem atrito, sem aceleração centrípeta que faça você girar de volta pra mim..., Só o peso de uma coluna d'água e uma gravidade insuportável...Aí, Morena... Despresando os efeitos da resistência do ar... Eu morro, Morena, eu morro...

Marcela Anders Gorga

20 de Maio de 2010.

domingo, 3 de abril de 2011

Pastoral



Coelhos são criaturas fascinantes. Curiosos, ágeis, vivazes... Assim que pus os olhos em você, minha Isolda, a associação foi imediata. Lobos reconhecem rapidamente a presa que mais lhes agrada... Doce, pura, assustada e tão ávida por ser devorada. Fiz o que bem entendi e você o permitiu. A minha solidão era o atrativo e eu bem o sabia. O lobo desgarrado da matilha insana dos O'Hagan é mais do que solitário. É faminto. Me alimentei de você, consumi cada suspiro e cada arrepio da sua bela pele aveludada. E é estranho chegar a essa altura da vida e não se sentir saciado, não desejar outro tipo de carne senão a deste belo espécime adormecido na minha cama. E saber que, por mais que eu tenha brincado com a comida, ela sempre retorna, com os olhinhos assustados...

Não te culpo, a ghrá. O tormento infligido por um membro do bando te anestesiou para os dentes que viriam a te morder e morder por você. Um coelho se apaixona por um lobo porque este, melhor do que ninguém, reconhece outro coelho assustado usando pele de lobo. E sabe sacodí-lo pra fora do disfarce.

Não, minha doce Isolda, nós não pertencemos a matilhas ou bandos. A dor nos moldou um para o outro, mas não para comunidades. Somos espécimes raros. Descansa, meu amor, e embala nosso filho no seu ventre. Nada mais vai te incomodar. Nem lobos, nem coelhos.

Matemática

É engraçado, esse hábito de remoer... Que adquirí de uns anos para cá. Na juventude, a gente pensa que os velhos, quando falam com as paredes, estão senis. Mas eles estão só remoendo... Todo mundo tem algo para remoer, é algo que resulta de um aoperação de proporção direta, eu acho...

Era o que ela achava, aquela doida. Doida nada. Ela sabia do que estava falando. A gente se conhecia desde os nove, dez anos de idade. A gente brinacava juntos de lutar do mesmo lado. Ela, eu e a minha mulher, de quem, na época, eu apanhava. E muito.
Mas a gente cresceu, não tem jeito, e a política entrou na conversa. Não tem jeito mesmo.

A gente vivia um Estado de Bem-Estar social, ela soltava os cachorros daquele jargão em mim. E eu, aspirante a canal quatro... Ah, o que eu queria com isso, eu, me formando jornalista, montado no meu próprio jargão para desaparelhar essa política de assistência à "Pobre"! Quem está na miséria não precisa de assistência, não é mesmo? Era tudo maluquice dessas ciências humanas inimpregáveis...

Eu lá, ansioso por uma vaga no horário nobre, para poder desqualificar uma coisa que nem conhecia. Pelo simples prazer de abanar a cauda para o editor-chefe e perguntar se peguei a bolinha direito...

A gente se via sempre. Minha mulher e ela continuaram vizinhas mesmo quando me mudei. Ela me chamava de Udenista e me dava um abraço furioso. Carinhoso.
E eu a chamava de Sindicalista. E ela nem tinha ainda arranjado o primeiro emprego... Amor de amigo é assim mesmo.

Quando eu entrei para o horário nobre, ela ganhou um prêmio por um livro que muita gente que eu queria conhecer criticou. Ela disse que ía me deserdar pela vergonha de eu trabalhar num antro de... Não, não posso repetir o que ela disse...

Só posso remoer.

Eu ganhava o triplo do que ela conseguía por mês, mas quem foi à Oslo foi ela.
E quando ela voltou, o mar já não estava para peixe. Não para aquele tipo de peixe que nada contra a tarrafa do horário nobre.

Eu fui aprendendo, e fui dançando aqueles passinhos certos para não dançar de vez. Uma dança matemática de passos calculadíssimos. Não dá para errar o lugar da vírgula nesse número de circo que eu fazia noite após noite. Fui deixando o editor, o supervisor, o âncora com quem dividia a bancada, me colocarem aquela venda maravilhosa para eu fingir que não via o resultado da conta desastrada que nós transmitíamos.

Business is business.
A gente se encontrou antes da eleição.
Udenista!
Sindicalista!
Minha mulher revirou os olhos.
A mulher dela riu.

'Você sabe que se ele for eleito vão me torturar e matar não é', ela falou no meu ouvido. Caímos na gargalhada. Eu respondi que ía rir muito da cara dela quando nada disso acontecesse.

Votamos.

Ela não sabia que eu já sabia quem ía ganhar. Nesse cálculo não haveria nenhuma falha.

A gente andava de patins na calçada esburacada.
Ela analisava que as mudanças sociais são o resultado da vários cálculos pessoais.
Eu fiz as minhas contas.
As perseguições começaram.
Ela preferia casquinha de chocolate e eu mista.
Eu a ensinei a andar de bicicleta.
Quando vieram à minha sala, era o nome dela que queriam.
Ela me ensinou a gostar de escrever.
Ela me ensinou a dançar.
E eu dancei conforme a música.
Ela me ajudou a conquistar a minha mulher.
Ela perguntou, 'você não vai me dedar, né?'
Ela foi presa.
Ela foi morta.
E sabe-se lá o que mais.
E quem a dedou fui eu.
A mulher dela nunca mais me perdoou.
Mas, para a minha mulher eu nunca vou poder admitir.
Ela não perdoaria.
Era a melhor amiga dela.
Era a minha melhor amiga.
Engraçado, esse hábito de remoer... É uma maneira de esquecer o preço que se paga para que o show possa continuar.

Marcela Gorga,
28 de outubro de 2010.