segunda-feira, 12 de abril de 2010

Rathmullan


Você entra no quarto escuro aos tropeços, o medo dominando e cegando e sorvendo a umidade das paredes. A chuva dá cintadas irregulares nas janelas, por onde entra um rasgo cinzento medíocre de fim do dia. São quatro da tarde e a cidade já dorme para as coisas que você quer gritar, mas não há quem ouça... Não passa de um rato precisando de um buraco, mas já cresceu demais, os pés aparecem sob o estrado mofado por mais que você se encolha e lute contra os espasmos, a barriga contraindo e relaxando, um punho irredutível sobre a força de vontade. Você tenta convencer a si mesmo de que se Colin estiver bem, dormindo no outro quarto, então tudo ficará – mas não ficará bem, ele treme, o colchão range tanto quanto os dentes tensos dele no outro quarto, amontoado na cama velha que os Irmãos doaram no verão, ele chora soluços que o pavor ensinou a estrangular desde cedo e só tem quatro anos, só quatro anos... Os Irmãos doam camas, com sorrisos, os bons Irmãos cegos e surdos e sorridentes... Resquícios de respiração pesada deslizam engraxados de choro pelas brechas das paredes, pelo vão do telhado, pelos buracos de ratos.


Na escuridão, com seus haustos calando o radar dos pêlos eriçados pelo corpo, você já não sabe quantos anos tem ou quem é. Só tem consciência das botas pesadas entrando em casa, e das cortinas dos vizinhos se fechando para o espetáculo na casa dos O'Hagan. O intento de cada passada, cric-crac, incitando fugas impossíveis. Um homem não foge pela janela, e mesmo se fugísse, aonde iría? São todos policiais em cidades pequenas. Sempre haverá o açougueiro, a vizinha viúva, o leiteiro, alguém ansioso para reportar ao Comissário, o Dono da casa, o Macho Alpha, que viu seu passarinho mais velho voar do ninho e correr as colinas até os sapatos terminarem de rasgar. E depóis correr descalço até perder os dedões, como Aodh Ruaidh O'Donnell nas aulas de história, nas histórias dos bêbados, nos panfletos pega-moscas para turistas. Só cabe a você esperar e rezar por Dániel. Que um dos irmãos escape àquele terror despertando da dormência da semi-vida para o espetáculo quotidiano.


O'Donnell fugiu dos comissários para seus pais, de volta à Donegal. Não foi deu pai que arrancou os dedões de seus pés, foi o frio da fuga, não é um bom exemplo, certamente, só atrapalha as polias pensantes conforme o pavor evapora os óleos e vêm esses pensamentos errantes explodindo as máquinas, não há o que dizer para a correia do Grande Comissário Vermelho quando ele chegar, já vem subindo a escada e mesmo antes dela chegar você já sente a carne arder e a bexiga contida lhe arranca lágrimas e suor gélido nas costas, nas têmporas, o tempo se esgotando e como uma prece a mesma linha se repete: Colin precisava comer, precisava comer, uma ciranda gritada do gravador quebrado no fundo escuro dos frangalhos de sanidade em sua cabecinha. Corra, Danny, pelo amor de Deus, corra e se jogue no mar. Antes que o velho o alcance...


Vocês roubaram do Comissário, você roubara do Comissário, o outro ele arrasta feito um filhote dos animais da tevê depois, para aquela ciranda indizível no quarto de casal... Roubara da cerveja do Comissário, que cuidava de todos eles, não cuidava? Ele não lhes dava o necessário? Ele não os pusera no mundo sozinho, mas fora deixado sozinho para fazê-los crescer e você roubara dele. Era culpado além dos terços que dissera após o confessionário, tinha que pagar e o Comissário ía sofrer a cada cintada no seu lombo também, não ía? O dinheiro da cerveja não deveria ser motivo suficiente para bater no filho do meio, deveria? A dúvida carcomendo, um queijo apodrecendo para consumo sob a cama até que seus pés fossem agarrados e a sentença começasse a ser exxcutada, a qualquer momento agora. Ele já estava no segundo andar e só resta chorar e tentar ser um homem embora você não tenha nem dez anos.


Não há para onde correr, para quem pedir socorro, o padre riu quando Colin falou que Papai dança com Danny enquanto Danny vertia seu asco espesso atrás da casa paroquial. Riu e os pôs à caminho de casa com tapinhas no ombro do bom Garda O'Hagan, mantendo as crianças da vila seguras. O pobre Danny está doente, a professora de matemática vivia na casa em frente e bem sabia das doenças dos O'Hagan... Não havia remédio para o sacrifício de se tornar Áine O'Hagan para preencher os vazios do Comissário no casebre de paredes de espinhos. Mas ao menos por enquanto, ele corria livre para algum lugar onde não fechassem janelas quando as botas velhas anunciavam o espetáculo subindo a rua.


São só vocês dois; você e o Comissário. Ele vai bater e você vai amá-lo e se arrepender, amá-lo enquanto se arrepende amargamente, amá-lo enquanto o odeia, odeia por sentir-se amado. Você sabe que ele ama e odeia também. E que ele pode e você não pode com ele, nem trinta anos depois em seu loft em Dublin a heroína permite enfrentá-lo, mas um dia vai poder, e vai matá-lo e chorar em seu túmulo e cuspir na lápide porque não há Freud que explique o amor de um pai irlandês por seu filho.






Notas:




Aodh Ruaidh O'Donnell – Hugh “O Vermelho” O'Donnell, rei do Reino de Tír Chonnaill,(lê-se Tir Connell), atual condado de Donegal, República da Irlanda. No fim do século XVI, aos 15 anos, ele foi raptado do porto de Rathmullan por emissário ingleses, que o encarceraram no castelo de Dublin por quatro anos até sua fuga, na noite de reis (6 de Janeiro) de 1592. A fuga no inverno através de uma região montanhosa ao sul de Dublin custou-lhe os dedões dos pés.




Garda – Policial, em gaélico irlandês.


Rio de Janeiro, 12 de Abril de 2010,
Marcela Anders Gorga

Um comentário:

  1. Olá Joane: Vi o seu comentario no meu blog, caso ainda não tenha conseguido resolver o problema da sua barbie Basic me escreva ok? Bjs.

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