segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Astronomia



A efemeridade não é uma verdade confortável. Não quando é a sua cerejeira que o vento vem despetalar. Um esplendor de amor arruinado e você lá, catando os cacos do chão. Desce pelo seu sangue uma descarga elétrica e o cérebro em curto ainda conta as flores como se estivessem agarradas nos galhos. É lá que você as vê, e ainda se inebria com o perfume. Mas estão por todo o chão, e você agacha e cata retalhos de sonhos como se sua vida dependesse disso... E de certa forma, depende.

Do ponto de vista de verdades mudas e milenares, a existência humana pode ser dissecada do corpo e concentrada no núcleo de força de uma flor de cerejeira. Habitamos os galhos. Mas, um dia, sem aviso, todos os caprichos e desejos e significados vão inevitavelmente decorar o chão e alegrar o ohanami dos planetas ao nosso redor.

Daí vêm esquisitices mil. Um engarrafamento de vidas loucas, conduzidas pelo medo da ventania. Você passa a fazer coisas de que ria, e a rir de quem você é. Você apela para curar um tumor com crendices, e nós, que fugimos juntos das botas enlameadas do velho, nós que preferimos segredar um do outro todos os pequenos pesadelos enfiados sob o forro daquela casa decrépita... Nós tentamos ser irmãos de novo, Danny, logo eu e você... Porque não há remédio; não há nada a não ser a verdade desconcertante de que o vento vem assoviando lá na esquina.

Você apela, a sua menina, sua Isolde apela, todos apelam para a eterna mudez sideral. Aqueles olhos miúdos das estrelas, miúdos e frios, você apela e até eu, que nunca fui astrônomo estou apelando.

Já catei muitos cacos do chão, mas esses não dá. Não posso varrer meu irmão mais velho depois de todos esses fossos que nós cavamos juntos, colocar num porta-retratos as flores que me sobrarem e admitir esse vazio... Não esse vazio.

Então eu, que me constituí no vazio, peço, adaptado que estou ao que é transitório, para que dessa vez o vento poupe a minha cerejeira. Para que eu e você possamos ainda contemplar aquelas mesmas estrelas que nos diziam que íamos escapar do velho O'Hagan, um dia.



Marcela Anders Gorga

6 de setembro de 2010.

2 comentários:

  1. Marcela, o Xico Santos recomendou teu texto Matemática... não encontrei aqui... gostaria de publicar textos seus no blog do Eita! sarau que organizo em São Paulo www.eitasarau.com.br se você der permissão é claro. abraço da Marise

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  2. Marise,

    Desculpe a demora.O texto recomendado pelo Xico já está no blog. E, sim, você tem minha autorização. Fico feliz de passar a estar entre os que contribuem de alguma forma para o eitasarau.
    Muito obrigada pelo convite!

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