domingo, 3 de abril de 2011

Matemática

É engraçado, esse hábito de remoer... Que adquirí de uns anos para cá. Na juventude, a gente pensa que os velhos, quando falam com as paredes, estão senis. Mas eles estão só remoendo... Todo mundo tem algo para remoer, é algo que resulta de um aoperação de proporção direta, eu acho...

Era o que ela achava, aquela doida. Doida nada. Ela sabia do que estava falando. A gente se conhecia desde os nove, dez anos de idade. A gente brinacava juntos de lutar do mesmo lado. Ela, eu e a minha mulher, de quem, na época, eu apanhava. E muito.
Mas a gente cresceu, não tem jeito, e a política entrou na conversa. Não tem jeito mesmo.

A gente vivia um Estado de Bem-Estar social, ela soltava os cachorros daquele jargão em mim. E eu, aspirante a canal quatro... Ah, o que eu queria com isso, eu, me formando jornalista, montado no meu próprio jargão para desaparelhar essa política de assistência à "Pobre"! Quem está na miséria não precisa de assistência, não é mesmo? Era tudo maluquice dessas ciências humanas inimpregáveis...

Eu lá, ansioso por uma vaga no horário nobre, para poder desqualificar uma coisa que nem conhecia. Pelo simples prazer de abanar a cauda para o editor-chefe e perguntar se peguei a bolinha direito...

A gente se via sempre. Minha mulher e ela continuaram vizinhas mesmo quando me mudei. Ela me chamava de Udenista e me dava um abraço furioso. Carinhoso.
E eu a chamava de Sindicalista. E ela nem tinha ainda arranjado o primeiro emprego... Amor de amigo é assim mesmo.

Quando eu entrei para o horário nobre, ela ganhou um prêmio por um livro que muita gente que eu queria conhecer criticou. Ela disse que ía me deserdar pela vergonha de eu trabalhar num antro de... Não, não posso repetir o que ela disse...

Só posso remoer.

Eu ganhava o triplo do que ela conseguía por mês, mas quem foi à Oslo foi ela.
E quando ela voltou, o mar já não estava para peixe. Não para aquele tipo de peixe que nada contra a tarrafa do horário nobre.

Eu fui aprendendo, e fui dançando aqueles passinhos certos para não dançar de vez. Uma dança matemática de passos calculadíssimos. Não dá para errar o lugar da vírgula nesse número de circo que eu fazia noite após noite. Fui deixando o editor, o supervisor, o âncora com quem dividia a bancada, me colocarem aquela venda maravilhosa para eu fingir que não via o resultado da conta desastrada que nós transmitíamos.

Business is business.
A gente se encontrou antes da eleição.
Udenista!
Sindicalista!
Minha mulher revirou os olhos.
A mulher dela riu.

'Você sabe que se ele for eleito vão me torturar e matar não é', ela falou no meu ouvido. Caímos na gargalhada. Eu respondi que ía rir muito da cara dela quando nada disso acontecesse.

Votamos.

Ela não sabia que eu já sabia quem ía ganhar. Nesse cálculo não haveria nenhuma falha.

A gente andava de patins na calçada esburacada.
Ela analisava que as mudanças sociais são o resultado da vários cálculos pessoais.
Eu fiz as minhas contas.
As perseguições começaram.
Ela preferia casquinha de chocolate e eu mista.
Eu a ensinei a andar de bicicleta.
Quando vieram à minha sala, era o nome dela que queriam.
Ela me ensinou a gostar de escrever.
Ela me ensinou a dançar.
E eu dancei conforme a música.
Ela me ajudou a conquistar a minha mulher.
Ela perguntou, 'você não vai me dedar, né?'
Ela foi presa.
Ela foi morta.
E sabe-se lá o que mais.
E quem a dedou fui eu.
A mulher dela nunca mais me perdoou.
Mas, para a minha mulher eu nunca vou poder admitir.
Ela não perdoaria.
Era a melhor amiga dela.
Era a minha melhor amiga.
Engraçado, esse hábito de remoer... É uma maneira de esquecer o preço que se paga para que o show possa continuar.

Marcela Gorga,
28 de outubro de 2010.

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