sexta-feira, 9 de abril de 2010

Nova Iorque


Subiu a Sétima Avenida a passos lentos, dissimulando honestíssimamente os olhares famintos escondidos nas lentes escuras. Mais um comercial de utilidade pública que a levara a uma exclente aquisição. Lentes miméticas para esconder da luz do dia suas fomes de onça pelos jeans e ternos apressados desfilando coxas de estudantes, universitários, executivos, entregadores...


E por dentro das lentes desfilavam amores de pleorama, nos quais ela não faria o esforço da conquista. O cavaleiro desfilaria um jeans de grife a passos resolutos com um sorriso de pasta de dente e um isoterma surgiria entre seus olhares com o apito de uma panela de pressão. Daí para a casa dele onde a caça se daria, correndo pelo parque de mãos dadas numa urgência nada infantil.


Desceu a sétima atrasado, os olhos saloios já sabujando as curvas apertadas naquela saia de maison, um mapa dos segredos sagitais decorado para a empreitada daquela tarde. Mais uma peleja nas Terras Baixas de onde viemos todos, e longe dos olhos presbiterianos de sua familia emigrada das Terras Altas. Em qualquer beco um biólogo pode pesquisar a orquidácea que lhe satifaz. O aluguel daquele apartamento saíra muito caro da última vez. A construção jamais sustentaria aquele palco para carnes se cortejarem com doces mentirinhas.


Fitou seu compromisso de almoço, um banquete ruivo de quatorze pratos para aquecer o início cinza de outubro. A coreografia mais antiga do mundo repetiría-se a despeito de rítmo. E depois... Qual era mesmo o próximo nome no índice?


A velha rotina de becos e calores, antes de voltar ao batente, usando rococós para ornar a carranca que o esperava em casa para orar sobre a mesa, orar na cama e dar-lhe as costas. Nunca é ruim fazer crescer os olhos dos broncos da construção. Cegá-los para a verdade desgastada dos porões da rotina, de modo a receber respeito. Acima de tudo, não seria motivo de chacota.


Aqui, aqui mesmo, nada de apartamento, ela se encarregou de engarupar-se nele adivinhando experientemente que a vista privilegiada para um latão de lixo e a desolação entre dois prédios era o que ele poderia pagar por hoje. E a eletricidade do momento valia cinco coberturas.


Na ventania que varreu papéis e rolou garrafas vazias na rua deserta do fim do almoço, deu-se a cia-voga, tambores imaginários e os gritos do condutor ditando aquela maré de suspiros ignorando as ruas movimentadas alí perto. Garoava fino e os haustos de ar faziam formas vaporosas insignificantes, frações imateriais de intensidade. Bocas transformadoras de energia num curto sem raio. E ele perdido no puxado dos olhos bem maquiados murmurando sentimentos, coisas de choldra que riscavam uma linha precisa de hilariedade entre seus lábios. Daria um bom guia turístico, venderia bem em livrarias hype da Europa, o que se pode encontrar do outro lado da ponte e longe da civilização...


Aportaram de volta ao beco e ele iniciou a torrente setífera de afagos e agradinhos que a traria de volta. Sempre trazia as ricaças frígidas de Manhattan, e a geishinha alí não seria diferente. Ajeitou a echarpe francesa de volta no pescoço dela. Seu emprego de meio período: produtor do cinema desenrolando-se sem parar por trás daquelas lentes escuras que ele cataria do chão e devolveria num instante. Podia contar os segundos que as engrenagens dela levavam rangendo de volta ao controle. Três, dois, um...


Desraigou a cerejeira escocesa e ajeitou a saia justa. Passado o hanami, aquela árvore tornava-se desinteressante com aquela paixonite dessecativa. Se ao menos o homem ficasse calado! Mas era assim entre os selvagens do Brooklyn, meditou buscando seu centro de calma dentro da bolsa. Deu-lhe uns tapinhas agradecidos no ombro...Mas gostou quando ele exigiu um beijo... Anotou na agenda a próxima disponibilidade de horário e deu-lhe outra vez o número do celular ao qual sua secretária não tinha acesso. Checou o horário, ajeitou os sapatos. Agradeceu quando recebeu de volta seus óculos. E marchou para o próximo principelho antes da hora do chá. Sua secretária já comunicara a todos que iría ao dentista. A boca é sua maior cúmplice, uma vez que ninguém jamais a examinará na firma para confirmar se está precisada de socorro. Quanto à seu marido... Permitiu-se uma risadinha no táxi.


Ele assobiava no beco. As maravilhas que os classificados trazem... Nunca teria encontrado, em Argyll, as meias palavras da japonesa da realeza local entediada dos joguinhos de brunch e caridade de natal. E quando aquela maritaca descabelada o questionava sobre seu interesse nas ofertas replicava meramente que um dos dois tinha de pensar no futuro enquanto o outro se guardava para cristo. Até mesmo a sua alma pura e casta precisa de uma casa, Megan. E ele? Ah, suas fomes não eram satisfeitas àquela mesa, ou em qualquer outro cômodo daquele porão. Ela se valera de Deus desde que chegaram alí... E o deixara livre para fazer como bem entendesse. Agradecia à estátua por aquela liberdade irreverente à que os yankees em geral não se permitiam e repassou as tarefas do fim do dia. Voltar à construção, pegar os filhos do primo na escola... O ensaio para tocar no pub... A dona do pub...


Na cobertura de paredes imaculadas reverberavam os números do mercado financeiro. O mesmo som que a despertava de manhã. O instinto para a bolsa de valores engrunhira outros instintos de Issao. Os mesmos telefonemas tediosos todas as noites. Frígidas de amigos dele do outro lado, jantares beneficentes e as desculpas entediadas para não frequentar aquela ostrábia puritana cheia de ouvidos e intentos nos bolsos secretos de seus tailleurs. Sentou-se com seu diário, bolando seu próimo anúncio. Sempre havia algo que pudesse oferecer. O escocês viera por um violino, o francês pelo conjunto de cha-no-yu... Em algum lugar daquela selvageria ele afinava seu fiddle. Mas ela preferia não pensar nisso. Lavou no ofurô os cheiros dos homens do dia. Queria que Issao os sentisse. Um pouquinho do caldeirão cultural que nela mergulhava. Mas nunca se pode prever certos efeitos do orgulho japonês...


Rio de Janeiro, 09 de Abril de 2010
Marcela Anders Gorga

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