sexta-feira, 9 de abril de 2010

Concepción


A hora da ceifa não batera gongo, não soara alerta, não alardeara arauto. Abatera-se silenciosamente cônscia dos vinhedos e casas, e, como boa funcionária do mês, trabalhou a terra até os arredores tornarem-se arremedos de um passado quebradiço, seco, sem nome, sem rosto.


E ele seguia rastando pés com o trovão nos ouvidos dos gritos emaranhados da rocha e da sua gente vergando e partindo nas reataduras, olhos envolvidos no filme dos horrores de sobreviver. Um estado resignificado de resignação de ser menos que um pedaço despontado da vida anterior. A sua estrada era agora a escuridão solitária e correntes ruins esfriavam-lhe o sangue e os instintos. Meras constatações e o ódio de ser capaz de constatar a própria existência privada daquele porquê galado num ventre rompido e devorado pelo chão. Tão pequeno que nem vira o sexo. A curiosidade impossível martelava pregos de agonia que lhe coroavam as horas incolores. Estruturas descarnadas de serenidade, ferros pedindo a modéstia de seus tijolos espalhados nas calçadas. A perda era o denominador comum dos bairros cediços.


A onda de terra furibunda desramara-lhe a cama. E levara uns brotos de sua sanidade para semear em paragens desconhecidas. Tão revolvido quanto o ventre daquele chão. Gangorreando ironias do arremedo de futuro que lhe restara, na caminhada sem fim naquele nada indo a lugar algum, estradas interditadas e o exército na rua fazendo feridas para curar a fome de quem ainda tinha razão para ter fome. Gente que espera os novos medos paridos de um sismógrafo, gente que tem pudores e vergonhas mesmo na miséria, gente que recua do esgar ensandecido que desnuda a loucura adornando sua alma, uma máscara de nô pintada à mão pela natureza nos espasmos de um acasalamento desastroso.


Herdara da ausência dela uma ermitania sem siso. A abadia de Nossa Senhora dos Insanos, fundada nas sombras do delírio em que pregava para os rostos amados que já não existiam mais. Mãos pedintes pendendo da nave até o altar, ventre daquele culto de morte e reencontro, um padre kamikaze falando para uma audiência de fragmentos supersônicos num cântico selvagem de auto-destruição. Hosana in Excelsis. Carícias excitadas nas curvas de uma sombra e a vontade de fazer outro filho com o nada com que se deitara. Um filho que suprisse os três deglutidos na gulodice da lama e mais aquela presença sem nome dentro dela. Todos sentados em suas roupas de domingo no banco mais perto de seu púlpito de vento.


Nas entranhas revolvidas, erosão das marés internas. Uma terra arrasada de palavras agrestes e gestos espinhosos pela qual a compaixão alheia escorre sem regar. Um homem sem lençóis freáticos para guardar a piedade das missas dominicais. De sua casa, resta o implúvio em que houvera a fonte e as roseiras dela, aonde ele se deixa bater pela chuva que veio dar contornos novos às tantas vidas pela metade. Um arremedo fistuloso de várias existências colhidas num feixe, feito cana para a combustão das rodas dentadas do planeta. Um triturador de almas que se dispersam em centelhas nas carvoarias das profundezas vulcânicas.


Os dias passam e ele tenta se reconceber, um feto num útero de lembranças quentes. Ara a terra conversando alegremente com os niños. Volta para a casa e se banqueteia de ar nos braços dela. Acaricia-lhe o ventre na cama cheia de fantasmas, será uma niña dessa vez? Grita que ninguém consertará as paredes, por mais que a casa inteira balance com o vento. Os empregados deixam as alas tombadas da hacienda, um a um, com a dor muda e pontiaguda de quem ama um louco. E ele vaga de madrugada, esperando o reconfortante abraço da alvenaria do teto.




Rio de Janeiro, 5 de Abril de 2010.

Marcela Anders Gorga.

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