sexta-feira, 26 de março de 2010

Farrapos


(Quadro de Edvard Münch)

Levantou-se ao toque do telefone. Enrolou o que ainda lhe sobrava num lençol e atendeu. As palavras trocadas com a prima abafavam os frêmitos do corpo febril do toque dele, alí estirado na cama, aquela máscara indecifrável esfriando os impulsos da cegueira anterior. Dele, veio um único suspiro, levemente entediado com o rumo da noite. Alí, ela percebeu que devia partir. Não pela preocupação da prima Róise, em Dublin, mas... Aquele suspiro deu a decisão de seus rumos e começaram no coração os rumores da tempestade já tão temida.

Desligou. Lançou a ele um olhar transbordando sensações. Ele deu mais atenção à brisa brincando com a cortina. Era como ela sabia que seria. Abotoou a camisa, abotoou as mágoas, engoliu a dor e bebeu água por cima para descer melhor aquele amargor amarrado na boca. E disse a ele assim, de supetão, com a voz cambaleando no meio fio da dor, professor O'Hagan...

Conseguiu sua atenção, um vagaroso verde coberto por cachos negros, afastados com o descaso das mãos que a invadiram no giro anterior da ampulheta. Ele ainda estava dentro dela, pulsando dentro dela, implacável, como nos sonhos ela o imaginava, um sonho, o sonho dela realizado naquela febre rubra que queimara a mão entre suas pernas, marcara em seus ouvidos os contornos de cada selvageria que ele proferira, queimara dentro dela restrições e resguardos cujo gosto dos restos lhe secava a garganta agora. E ainda havia no olhar dele umas fagulhas rolando ao sabor da brisa sustentada pelo olhar intenso. A fala lhe faltou. Já era assim desde a primeira aula. Aquela presença nua na cama a impressionara ao entrar na sala para a aula de modelagem em escultura. Mandaram uma obra lecionar... E ela quisera ser a “Flor de Magherally”. Mas o homem cultiva um jardim de girassóis, aqueles olhos inquietos e as coxas apertadas sob as saias de todas elas, todas elas e praga nenhuma mataria aquele jardim...

E aquilo, aquele visco negro serpeou por dentro dela, uma força terrível, arrepiando a pele, cada poro um grumo raivoso daquele desamor glacial. Um pouco rouca no ínicio, com uma voz que não era bem sua, ela completou o chamamento. Tenho que ir, afirmou, um pouco mais seca, fechando a saia sobre o desejo que ainda ardia por ele.

O porquê que ele lhe exigia foi ríspido, um posseiro exigindo as marcas feitas nela como certidão em três vias autenticada em cartório. Num movimento felino, ele estava de pé, está tarde, é perigoso, deixe-me ao menos levar você de carro, e ela se fez de surda, meu deus como é difícil negar aquela voz, negar a força que aquele por favor, Isolde tinha de ser a gravidade que prende seus pés no chão...

Arrefeceu a maré... Ela baixou o rosto. Fôlego. Respirar para não naufragar nele. Antes cortar a corda a ser abandonada à deriva, boiando agarrada ao coração estúpido. Não. Obrigada. Adeus.


Marcela Gorga

1 de Março de 2010.

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